Thursday, September 7, 2017

Estarei bebendo coisas?

Estarei bebendo coisas?

   A literatura e o cinema já levaram à exaustão o clichê do personagem a se perguntar se está vendo/ouvindo coisas, quando seus sentidos passam por algum estranhamento. O estranhamento vem dos formalistas russos, que começaram seu movimento entre as décadas de 1910-1930 e acabaram por tornar-se os pais da crítica literária moderna (veja aqui, e demais vínculos na mesma página). O que este escriba tenta fazer agora é levar o estranhamento a um novo sentido: o paladar. A motivação é a de sempre, e não foge muito àquela dos formalistas russos na literatura: crítica de vinhos. A crítica desfruta, no Brasil, terra de pessoas ridículas que não aceitam ter suas ideias confrontadas, de uma certa má estima. Isso é natural em um lugar onde cada um acha-se no direito de dizer verdades absolutas e incontestes. Creio existirem lugares onde ouvir o contraditório e contra-argumentar seja parte corrente do dia a dia.
   No tocante aos vinhos, a crítica deve apontar seus defeitos e, principalmente, nos dias de hoje, seus vícios. Claro, não deve deixar de exaltar as qualidades, quando existirem. O meu descontentamento vem de uma categoria de vinhos que estão se tornando cada vez mais parecidos entre si, apesar de oriundos de diferentes países. Fáceis de beber, são fruto da tentativa desesperada de vários produtores de tornar o vinho agradável ao gosto popular. Vejamos o que foi degustado.

Sarda Matel Reserve 2004. Representante do Roussillon, comuna pertencente à região de Provença, no Sul da França, surpreendeu com boa boca e nariz que fez este pobre-diabo sugerir que fosse um vinho italiano. Tem 14,5% de álcool, bem integrado a bons taninos e boa acidez. É bem honesto para sua faixa de preço, R$ 85,00, ainda comparando o preço lá fora. A confusão com um italiano apenas mostra o quanto este Enochato precisa aprender, mas é um vinho de características europeias. Na média, arrasa com sul americanos nessa faixa de preço.

Roquette e Cazes 2006. Duriense muito famoso aqui pela região de S. Carlos, apresentou bons taninos e boa acidez. O álcool escapou um pouco (também... 15%... - risos), sem comprometer. Notas de goiaba, acredito que pela evolução da safra, não é aquela goiaba enjoativa que  pulula muitos chilenos atualmente, em clara tentativa de substituição da madeira tão apresente até alguns anos atrás. Vendido a cerca de R$ 80,00 "lá fora", os R$ 300,00 que chega a custar aqui apenas evidencia reclamação antiga deste Enochato: a importadora vem aumentando o preço de alguns de seus produtos em dólares ano após ano. Se custasse a metade, seria bem competitivo.

Berônia Tempranillo Elaboración Especial 2004. A Bodegas Beronia, localizada em Rioja, Espanha, produzem excelentes  Tempranillos, embora plante também Graciano, Garnacha e Viura. Em sua linha Crianza, Reserva e Gran Reserva é um clássico para os amantes de vinhos espanhóis. Este Elaboración Especial eu não conhecia, e está precificado na mesma linha dos Reserva. Na Espanha, custa uns R$ 40,00, contra uma média de R$ 125,00 por aqui. Tem 14% de álcool, e é o exemplo acabado do vinho que tenta ser popular. Em nada lembra um Tempranillo "clássico". Para um amigo presente na degustação, nariz respeitado mais pela boa percepção de odores do que pelo tamanho (risos!) - e também para mim! - lembrou bastante o travo algo doce do vinho Português. Esse travo doce no caso dos Portugueses, deixemos claro, não é do tipo enjoativo. A mim parece estar mais ligado ao terroir e à vinificação do que em outros exemplares onde o dulçor cai com certa impressão de não natural. É um pouco difícil de explicar. O bebedor mais experiente saberá do que falo. O menos experiente, lamento, precisará de mais litragem. Enfim, aqui está um vinho ao estilo dito Coca-Cola. Não é ruim, nem desequilibrado. Mas está no conjunto "última escolha" de quem pretende uma nova experiência a cada garrafa.





12 comments:

  1. Aqui no meu estado, no centro do país e com frete caro, encontro o Roquette e Cazes por cerca de 150. Vi que em SP há diversas lojas vendendo por pouco mais de 200. Será então o problema com a importadora?
    Sds,
    Alex

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  2. Obrigado pela informação! Aqui em S. Paulo está de fato entre R$ 240,00 a R$ 300,00, veja: https://www.bancadoramon.com.br/bebidas/vinhos/vinho-roquette-cazes-douro-750ml.

    Custar R$ 150,00 aí no centro da país reforça o quanto o mercado está desregulado, sem padrão. Não me parece problema na importadora; estive em degustação recente e conversei rapidamente com representante, não comentou nada.

    Fui procurar algumas alternativas Brasil afora. Sabores de Portugal, R$ 180,00, bom preço. Super Adega... R$ 711,00!

    obrigado,
    Carlos

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    1. É só conferir na Super Adega... talvez seja preço errado, mas é o que está marcado...

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  4. Você está enganado. O vinho que custa 711 na super adega é o Xisto, da Roquette e Cazes, não o Roquette e Cazes.

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    1. Então me enganei mesmo, pelo que peço desculpas!

      Por outro lado, conferi o preço no site do importador.

      Roquette e Cazes, http://www.qualimpor.com.br/produto/roquette-cazes-2011/, R$ 1.790,80 a caixa de 6. Dá quase R$ 300,00 a garrafa.

      Xisto Roquette e Cazes, http://www.qualimpor.com.br/produto/xisto-roquette-cazes-2009-750ml/, R$ 3.226,30 a caixa de 3. Dá uns R$ 1.070,00 a garrafa.

      Ou seja: a importadora concede uma margem gorda para o logista. Com a crise, o logista parece estar queimando parte da margem.

      Portanto, acho que minha conclusão continua válida: a margem dessa importadora é muito alta.

      []s, e desculpe o erro.
      Carlos

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  5. Acho que vou discordar de você. A importadora coloca o preço alto para não competir com o lojista. Isso é uma prática até certo ponto justa. Mas se é possível encontrar o vinho por 150, quer dizer que o lojista comprou por menos que isso da importadora. Ou seja, lojistas que vendem por mais de 250 estão ganhando muito. O problema neste caso, não é da importadora.
    Sds,
    Alex

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    1. Entendo o seu ponto. Mas o padrão é a importadora dar um desconto sobre o preço do site para seu representante. Em algumas (Mistral), o desconto é conhecido por quem está no metiê: 28%.

      Importadoras que trabalham com margens menores (Enoeventos dá um bom panorama de quem são elas), o desconto é de cerca de 20%.

      Importadoras mais "rapineiras" concedem 50%.

      Se custa 300,00 na importadora, poderíamos fazer um cálculo bem chutado e imaginar que o lojista até comprou por 150,00. Não deve ter comprado por menos. O que pode acontecer é "preço antigo" (não reajustado), porque o produto encalhou. Ou é preço errado, mesmo...
      []s,
      Carlos

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  6. Há dezenas de importadoras pequenas, que vivem aos trancos e barrancos. Pode-se contar nos dedos de uma mão as que sobrevivem. O negócio do vinho não é fácil. Mas tem importadora e lojista que cobram preços absurdos. Por isso, quando aparece um preço mais decente, pensamos que o vinho é estoque antigo, preço tá errado e outras coisas. Conhece aquela história do bode na sala? Morei nos EUA por 5 anos e lá comprava vinhos com preços justos. E você tem dúvida que todos estavam ganhando? Aqui querem ganhar demais, sempre. Não só no caso dos vinhos.
    Abraço,
    Alex

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    1. Não há dúvida de que nos EUA toda a cadeia ganha, e os vinhos possuem preços justos. E de repente vc encontra um vinho de USD 5,00 (R$ 18,00, arredondando) vendido aqui a R$ 75,00. Claramente há lucro abusivo. Por outro lado, já fiz compra aqui de vinho a R$ 150,00 que lá custa R$ 80,00. Menos da metade. E esse tipo de compra acontece em duas situações:
      1) Quando a importadora como um todo pratica margens "justas";
      2) Quando a importadora está oferecendo 60% de desconto(!)

      No mais, é necessário pesar outros critérios antes de simplesmente dizer que é estoque antigo ou preço errado. Penso ter feito isso. O preço de lista do produto é R$ 300,00, segundo o importador. Se está R$ 150,00 em algum lugar, e a média é R$ 240,00, algo está bem estranho.

      Sobre o mercado em geral, e mostrando a Qualimpor em particular, há um estudo aqui: http://www.enoeventos.com.br/201503/compara8/compara8.htm. Existem outros estudos no mesmo site, de anos anteriores, onde nota-se que a Qualimpor aumentou seu ganho (ou, de outra maneira, seu custo em dolar). Aliás, saberia dizer qual a safra do Roquette que está sendo vendido a R$ 150,00?
      []s,
      Carlos

      PS: o negócio do vinho não é fácil mesmo. Mas... o colega conhece algum negócio que seja "fácil"? (a menos, claro, desses que estão abundando nas páginas policiais de algum tempo para cá...)

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  7. A safra do Roquette é 2013. Comprei uma caixa dele.

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  8. A safra ofertada pela importadora é a 2013... bem, a R$ 150,00 é uma boa compra, parabéns. Com 18 meses de envelhecimento, o lançamento foi lá por 2015, chegando ao Brasil entre 2016 e 2016. Não dá para dizer que é preço "velho".

    Os fatos são:
    1) O preço sugerido pelo importador é R$ 300,00;
    2) O preço praticado aqui em S. Paulo fica entre R$ 240,00-R$ 300,00.
    3) O custo lá fora é R$ 80,00.

    Por R$ 150, eu poderia comprar. Ao custo médio da região onde moro, não vale o preço (acho que na faixa de R$ 240,00). Dá praticamente 3x o preço lá de fora.

    Veja isto: https://www.wine-searcher.com/find/camplazens+la+rsrv+clape+roussillon+languedoc+france/2011, vinho que custa lá fora uns R$ 50,00 e está a R$ 128,00 na loja do importador. Esse vinho está mais dentro da margem que procuro consumir. Sim, atualmente olho o vinho, origem, safra... mas saber quem é o importador tem um peso grande, pelas margens. Se vou escolher entre dois produtos que não conheço, prefiro optar pelo que tem margens mais honestas.

    []s,
    Carlos

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