Tuesday, April 28, 2020

Um "pega pá capá" à portuguesa

Introito

   Gosto de vinhos portugueses. Sempre gostei, aliás. Nos anos 80, já eram comuns em supermercados de rede os exemplares da Bairrada. Não deviam ser grande coisa, mas este experimentador também não o era. Não naquela época. E não que o seja hoje, mas pelo menos atualmente ele tem alguma noção da própria ignorância e um pouco de senso crítico, o que, convenhamos, é um avanço e tanto. Havia também o Casal Garcia e o Calamares, que faziam muito sucesso entre o público, e o Lancers, menos famoso, tinha seu séquito apoiado no 'charme' da apresentação em garrafa que imitava terracota. Quem procurava tintos, encostava-se naqueles exemplares de Bairrada e Dão, estes representados pelo Catedral e Grão Vasco. Tinha, ainda, o indefectível Periquita - quem não conheceu, naquela época? Ainda vejo por aí, só me pergunto se tem a mesma aceitação no mercado atual. A quantidade de opções cresceu bastante...
   Sim, as opções apareceram. Seu crescimento foi desordenado, infelizmente. Esse "desordenado, infelizmente" vem do fato que as opções cresceram, mas o consumidor não foi tão beneficiado assim. Importadoras com margens pornográficas estabeleceram-na mais ou menos naquele momento, e o consumidor não tinha noção do quanto precisaria estar atento. Descobrir marcas de menor markup, ou de um markup minimamente 'honesto' deve ser exercício diário do bom consumidor neste país, mas isso só ficou mais claro com o advento da internet, quando pudemos começar a notar o preço dos produtos lá fora. As coisas aqui (no Brasil) são muito distorcidas. De longe, as mais (distorcidas), dentre os países que poderíamos chamar de 'potências'. Infelizmente. Aliás, pelos acontecimentos recentes - recentíssimos - estamos nos afastando cada vez mais do patamar que nos permitiria aspirar a tal designação.
   Um detalhe chato é que em S. Carlos - e região - os rótulos quase não mudam. Às vezes aparecem algumas novidades, em alguma degustação. E então essas 'novidades' acabam por tornar-se as novas 'carnes de vaca'. Ou seja: a disponibilidade de rótulos parece seguir-se a um certo crescimento do número de consumidores, mas também parece ficar limitada a eles! O resultado essa inércia dos lojistas, a médio/longo prazo (digo, desde 2010 para cá, mais ou menos), acabou sendo devastador para os próprios lojistas: muitos consumidores começaram a enveredar-se pela internet, foram apreciando outras opções - boas compras ou não - e percebendo que, em essência, dependiam muito pouco - ou nada - dos lojistas daqui.
   Desde sempre sou a favor do lojista. É ele quem promove - quando as promove - degustações para estarmos em contato com produtos e produtores. Não há melhor experiência do que vivenciar in loco um momento onde podemos 'emergir' em nossa bebida preferida, trocar ideias com 'amigos-bebedores' e conhecer outros. Mas o lojista também precisa perceber que ele é quem está ao nosso serviço, e não nós ao dele. A inversão dessa regra extremamente simples permitiu que o gado escapasse para o campo. E, rebelde, parece prometer cada vez mais que não voltará...
   Também é preciso comentar que o preço da 'imersão' proporcionado por uma degustação não pode ser a eterna submissão aos mesmos produtores, trocando-se apenas a safra. Já há muito tempo não quero mais a safra nova do velho vinho. Quero a safra velha do vinho novo. Para quem faz sentido, ótimo; não estou a fim de desenhar hoje.
   Como argumentos derradeiros, dois depoimentos:
   O do Flávio 'Vinhobão' (o Don Flavitxo de tantas postagens): um dos primeiros compradores do sítio da Wine tão logo ela apareceu no mercado, Flávio, que mora em condomínio, passou pelas fases de ser parado na portaria para receber sua caixa de vinhos, e notar que lá só estava a dele, para uma situação, já de anos atrás (quando ele contou-me a história), onde chegava a receber por engano a caixa de outro, dadas tantas outras que aguardavam seu feliz proprietário na 'casinha' do porteiro. E, pela conversa dele com os porteiros, 'é todo dia assim'!
   O meu próprio depoimento: comecei a 'acessar' chilenos um pouco melhores lá por 2004, quando passei a visitar o país regularmente por conta de velhas amizades enfim recobradas. Trazia, por USD 20,00 (ou menos), naquela época menos de R$ 40,00, vinhos que aqui custavam R$ 100,00-R$ 130,00. Eram vinhos que eu chamava várias pessoas a degustar e dividia com elas pelo custo 'de lá'. Aliado a isso, comecei a ler sobre vinhos e produtores, o que ninguém fazia. Citando de cabeça algumas regiões e uvas dentro delas, os confrades começaram a acreditar (risos!) que eu sabia mesmo sobre vinho. Sem maldade. O foco deles apenas era diferente: gostavam de vinho, mas não liam sobre. Mais do que justo, não queriam ser especialistas. Mas chamou-me a atenção quando muitas dessas pessoas, ao começarem a se 'desgarrar' do mercado local, vinham partilhar comigo - no encontro casual em algum restaurante, ou até nas próprias degustações locais(!) - a boa nova de terem encontrado um lugar 'assim e assado' em S. Paulo, na maior parte das vezes, com vinhos diferentes e preços melhores... sacou?

Embate de 'gigantes'

   Essa degustação aconteceu há algum tempo. Não avisei ao Flavitxo que levasse um portuga; disse apenas que levasse algo 'bom'. Flavitxo, como de hábito a tais chamados, não se fez de rogado: compareceu em alto estilo e fomos todos beneficiados pelo acaso. Mas voltemos ao começo.
  Um belo dia acordei com a pá virada (rs!) e resolvi que alguém pagaria o pato. Andava de marcação com 'ele', de modo que nem posso negar ter sido um 'caso pensado'. Combinei com a turma uma degustação às cegas; todos toparam. O convite ao Flávio veio depois. Estava era com desejo de experimentar mais um Xisto Roquette... e assim que preparei a 'brincadeira':
   Claro, levei todas as garrafas devidamente embaladas em papel alumínio. Don Flavitxo faria o mesmo. Vamos lá:
   Xisto Ilimitado (2016) e Xisto Cru (2014): lavras durienses de Luis Seabra, que deixou seu posto na respeitabilíssima Niepoort para tornar-se dono da sua própria marca, emprega principalmente - mas não apenas - as consagradas Touriga Franca e Alicante Bouchet. Preços na importadora: R$ 165,00 e R$ 383,00, respectivamente. A confirmação, como de hábito:

   Quinta do Crasto Reserva Vinhas Velhas (2008) e Xisto Roquette e Cazes (2005): mais durienses, desta vez produzidos pela famosa Quinta do Crasto. É um grande produtor da região, mas nem por isso seus vinhos deixam de ser bem acabados. Vinhas Velhas tem uma produção realmente grande, 80.000-90.000 garrafas. Já Xisto Roquette e Cazes é produzido apenas em safras específicas - foram apenas oito desde 2003, sendo 2015 a última safra disponível. O sítio da Qualimpor - importadora dos proprietários da própria Quinta do Crasto, que são os mesmos da Herdade do Esporão, também por ela representados - não traz mais os preços dos vinhos. Assim, precisamos apelar para o wine-searcher. Vinhas Velhas: entre R$ 332,00 e R$ 583,00. Xisto Roquette e Cases: entre R$ 779,90 e R$ 1.398,90. Pow, chega a quase 100% de variação. Para efeito de idoneidade e registro,


   O Xisto Roquette e o Vinhas Velhas passaram por aerador. Ambos do Luis Seabra respiraram em garrafa. Duas horas e pouco para todos. Em seis pessoas, as cinco garrafas serviram a todos e sobrou um pouco de cada. O Flávio comparecera com um Quinta do Noval, vinho de excelente produtor.

   Digno de nota, a certa altura puxei o Flávio de lado e perguntei o que ele achava dos vinhos. Dos dois primeiros (Xisto Ilimitado e Quinta do Crasto Reserva Vinhas Velhas), comentou que o primeiro parecia-se muito com o... Xisto Ilimitado(!), que ele experimentara há alguns meses e achara muito 'justo'. O segundo, identificou como duriense (!), e disse que estava muito bom. Melhor do que o primeiro. O terceiro, achou que poderia ser espanhol. O quarto (Roquette e Cazes), cravou duriense também(!). O quinto era o vinho dele.
   Na opinião dos bebedores - e isso foi quase unânime - o primeiro vinho ficou abaixo do segundo. Havia clara superioridade, mas era de 'um degrau'. Já o terceiro (Xisto Cru), foi considerado bem superior ao segundo, e próximo do quarto (Roquette e Cazes). O quinto foi considerado por todos o melhor, sem margem para discussão. O quinto era, portanto, o Quinta do Noval.
   Isso não se reflete nos preços dos vinhos, nem 'cá' e nem 'lá':
   Quinta do Crasto Reserva Vinhas Velhas, 25,00 €/R$ 332,00 e R$ 583,00
   Xisto Roquette e Cazes, 71,00 /R$ 779,90 e R$ 1.398,90
   Xisto Ilimitado, 12,50 €/R$ 165,00
   Xisto Cru, 33,00 /R$ 383,00
   Quinta do Noval, 54,00  / não encontrei estimativa para essa versão do Noval; recentemente aportou por aqui um Quinta do Noval Reserva, mas não tenho certeza de ser o mesmo.

   Outro fato digno de nota: logo que abri o primeiro vinho, o Flávio, com um sorriso maroto - ele chutara para o grupo que aquele poderia ser um Xisto Ilimitado - levanta o dedo e avisa:
   - Então vou reformar minha opinião que dei ao Carlão em reservado. O terceiro é o Xisto Cru.
   E era mesmo...
   Preciso falar de qualidade dos vinhos, de terroir? O Flavio cravou a origem todos... São vinhos de bom equilíbrio, boa boca, bom nariz, prontos para beber (também... um Roquette 2005...).

Conclusão

  Este 'mega embate' (risos!) comprova, mais uma vez e para náusea dos seguidores, aquilo que venho 'batendo' desde... sempre?: belos vinhos, em regime de péssimas compras, não proporcionam um prazer proporcional ao preço. O problema é que isso só fica mais evidente quando se faz uma comparação de 'alto nível', quer dizer, quando se tem a oportunidade de apreciar vinhos de padrão semelhante - neste caso, Xisto Cru, Roquette e Cazes e Quinta do Noval. Percebemos que, 'preço lá', a diferença entre  Xisto Cru e Quinta do Noval simplesmente... 'faz sentido': Noval é superior, portanto 'vale' mais.  E o preço de Xisto Roquette e Cazes parece mais uma piada - infelizmente. E olha, estou dizendo 'lá'! Ainda 'preço lá', Xisto Ilimitado é uma ótima compra, já que custa a metade (aqui também!), por apenas 'um degrau' abaixo, quando comparado com Quinta do Crasto Reserva Vinhas Velhas. Onde se tem uma concorrência 'porta a porta' - você sai da porta de um produtor e entra na porta de outro -, os preços tendem a ser mais equilibrados.
   Desnecessário declarar, mas vamos lá: nada tenho de pessoal contra ou a favor de qualquer um dos produtores. Aliás, conheço pessoalmente o pessoal do Crasto/Esporão, e desconheço completamente o senhor Luis Seabra. Aqui está expressa apenas a opinião. E não somente a minha! Depois, paguei por todas as garrafas (não sei o Flávio - risos). E não é porque paguei mais por um vinho que mostrou-se inferior que vou falar mal dele. Reafirmando, a percepção dos vinhos foi praticamente unânime. Por conclusão, os vinhos do Crasto são bons, mas a esse preço são péssimas compras. Diminua-se o preço a ponto de torná-los competitivos, e reformo minha opinião no dia seguinte. Não, não. No mesmo dia.
   Não tenho nada contra o produtor querer valorar seu produto. Afinal, se ele tem belos olhos, o produto dele deve valer mais, não é mesmo? Se a última declaração está certa ou errada (risos), é apenas plenamente discutível (gargalhadas!). Mas nada como uma avaliação corajosa e independente para posicionar as coisas nos devidos lugares. É mais ou menos como o caso do Sassicaia: é bom? É. Vale USD 215,00? Never... mas tem quem pague. A isso, chamamos 'mercado'.

6 comments:

  1. Big Charles!
    Na verdade, minha ordem decrescente foi: Noval 2010, Xisto Cru, Xisto Roquette 2005, Crasto Vinhas Velhas 2008 e Xisto Ilimitado. Mas o Ilimitado tinha mais vigor que o Xistão e o Crasto VV. Isso por que eu achei esses dois últimos já descendo a ladeira, perdendo força.
    Agora o Noval, estava impecável, ainda que em um estilo diferente do 2008, que era mais concentrado.
    Abração,
    Flavio

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    1. Don Flávio, obrigado pelo comentário.
      Vamos entender que o Roquette e o Vinhas Velhas tenham perdido a força. Para vinhos 'top' - pelo menos ao preço - era de esperar uma longevidade maior deles. Ou, no mínimo, eu esperaria, e pronto.
      Seria interessante provar um Vinhas Velhas mais novo e um Xisto Cru. Porque esses ficam, 'preço cheio', em um patamar competitivo. Como sabemos, o preço cheio da Qualimpor é o preço regular desses vinhos - não há 'promoção'; ou não vejo uma há muitos e muitos anos. Se encontrarmos uma promoção tipo bréqui fráidi honesta de Xisto Cru, bem, aí o VV vai para o vinagre.
      E concordo consigo que o Noval foi o melhor. Não sei se você notou quem levou o restinho de Noval para casa, abrindo mão do Roquette... eu mesmo... (risos!)
      []s,
      Carlos

      PS: preciso detonar logo meu outro Xisto Roquette... vou providenciar um cachorro quente amanhã!

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    2. E aí, Big Charles?
      Então, eu também esperaria mais longevidade. Mas veja que estamos falando de um vinho de 15 anos já. Eu bebi um Crasto VV 2008 há menos de um mês, e estava mais inteiro que esse da postagem. Cada garrafa, uma garrafa... Mas o Xistão 2005 eu já havia bebido tempos atrás, em duas ocasiões além dessa, e já notava certo cansaço dele. Mas lembre-se que o preço, tanto do VV, quanto do Xistão, é muito menor, proporcionalmente, nos EUA, por exemplo. Apesar de que, a partir de 2011, deram uma aumentada boa no Xisto (que custava 35 Euros) e também no Crasto VV.
      Particularmente, eu acho que o Xisto Cru e o Crasto VV têm qualidade similar, apesar dos estilos distintos.
      Abs
      Flavio

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  2. Flavitxo, obrigado pelas considerações. Vamos lá.
    * Pois é, um Xisto está custando em vários lugares a bagatela de R$ 1.000,00. Pow, vc sabe que por menos que isso faz-se boas compras de Borgonhas que vão durar mais de 20 anos e estarão "novos".
    * Também concordamos, veja, você escreveu
    <>Particularmente, eu acho que o Xisto Cru e o Crasto VV têm qualidade similar<>
    e eu,
    <>Seria interessante provar um Vinhas Velhas mais novo e um Xisto Cru. Porque esses ficam, 'preço cheio', em um patamar competitivo... Se encontrarmos uma promoção tipo bréqui fráidi honesta de Xisto Cru, bem, aí o VV vai para o vinagre.<>
    Então estamos dizendo exatamente a mesma coisa, de maneiras diferentes.
    Na dúvida: o Xisto Cru por R$ 230,00 e o Vinhas Velhas por R$ 380,00. De qual você compra uma caixa? Não pode misturar. Sei que soa capcioso, mas é o exercício que eu gosto de provocar.

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  3. Mas lembremos que o Crasto Vinhas Velhas custa 28-30 doletas fora. Mais barato que o Xisto Cru lá. Aí, a discrepância está ocorrendo aqui. Eu gosto de ambos. O VV é um belo vinho, mas chegou a um preço aqui que não dá mais para comprar.
    abs

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    1. Não há dúvida, você está certo nesse ponto. Mas...
      * Uma coisa é a realidade, com os preços de cada vinho aqui. Particularmente, ainda tenho 2 Vinhas Velhas, fora os que já bebi. Me contenta um Xisto Cru ao preço de promoção, e seguro a bala para um tiro mais certeiro sobre o que ainda não bebi. Vou me segurando com as 4 garrafas de Xisto Cru que me restam, enquanto aguardo uma situação de 'boa compra', uma alternativa com o preço do VV que quase certamente me dará mais prazer do que o próprio VV em seu preço cheio...
      * Outra coisa é o 'sonho'. Para mim o sonho é ver o brasileiro acordar como cidadão. Para o voto, para a escolha do serviço, para as compras, e daí as compras de vinho. O dia em que vinho caro sobrar 'horrores' na loja, vão tomar vergonha na cara. Aí eu volto a consumir VV. Nada contra o VV. Tudo contra o preço do VV...

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