Friday, October 30, 2020

"Eles" atacam

Introito

   Costumamos dizer por aí, à boca miúda, que enochatos são mascarados, políticos são desonestos, importadores são energúmenos e jornalistas, pelegos. Uma vez a Federação Paulista de Futebol fez assim: sorteava dentre os torcedores que compareciam ao estádio meia dúzia de gaiatos. No intervalo eles entravam em campo, uma bola era posta no círculo central e a missão de acertar o gol com um chute. Tinha um prêmio, talvez em dinheiro, não lembro, para quem o fizesse. Raras bolas atravessavam a linha de fundo dentro das linhas que delimitavam a pequena área. Algumas saiam pela lateral. Com sua costumeira verve, o Silvio Luiz comentou: "Esse é o sujeito que, na arquibancada, vaia o jogador quando ele erra em passe de 40 metros". O brasileiro é assim... acredita-se o senhor das moscas coisas, mas no fundo pouco sabe de qualquer assunto. Não respira e come ao mesmo tempo porque o cérebro comanda uma das operações automaticamente. Presente para dar palpites, não vai muito além: palpites, mesmo. Suposições vazias, sem qualquer coerência. Veja vários comentários neste mesmo blog, por parte de seus detratores. De maneira que, por esse parâmetro (cada um dá seu palpite), e segundo eles próprios, enochatos não são mascarados, políticos são honestos, importadores são competentes e jornalistas são os mais sérios e profissionais entes da face da Terra.

Mais um 'Teste Folha'. Teste quem?

   Certa vez a 'Folha de São Paulo' fez um levantamento dos professores-pesquisadores improdutivos na USP. Avisou em próprio diário que o faria. Sim, isso mesmo: considerou-se importante a ponto de acreditar que seu próprio 'aviso' deixaria a comunidade acadêmica ciente. Um professor no departamento onde eu estudava entrou na lista: nada publicara nos dois anos anteriores. Seu apelido - era 'moleque', apenas uns anos mais velho que nós, de maneira que tínhamos alguma liberdade com ele - virou Improdutivo. Detalhe: ele passara os dois anos anteriores trabalhando em seu doutorado na Universidade Manchester, então apenas e simplesmente uma das mais conceituadas do mundo na área de computação... Durante o começo dos anos 2000, a 'Folha' promovia, em seu caderno de informática, o "Teste USP". Era ridículo engraçado. Professores que jamais na vida tinham visto um fotolito opinavam sobre programas de desenho criativo e de editoração eletrônica - para ficar apenas neste exemplo. Em 2013 escrevi sobre um "Teste Folha" de vinhos. Está aqui. Essa moçada tem estória... Não a faz, mas a tem...

Hélio quem?

   Desta vez um colunista da 'Folha' relata em seu espaço que um restaurante serviu, por engano e entre si, o vinho trocado de duas mesas. O vinho de '10 dóla' de um casal apaixonado foi para a mesa de uns "wall-streeters" (sic), enquanto o vinho destes, de 1.500 'dóla', foi parar na mesa do casal. Nenhum deles percebeu a diferença. Por explicação, Hélio diz que o problema está no nosso cérebro. Ele escreve, textualmente:
A dificuldade, no caso da enologia, é que o paladar e o olfato humanos não são bons o bastante para julgar vinhos, pelo menos não no nível que os 'sommeliers', com seu vocabulário rebuscado e esnobe, fazem crer que é possível. Aí o cérebro, para não ficar mal, apela para rótulos, preços, críticas, etc.
   Observemos a concepção do cidadão: todo sommelier tem vocabulário rebuscado e esnobe. Notam? A mesma estória do começo...  o sujeito nada sabe, mas quer palpitar. É isso, devemos estar diante de um jornalista sério e profissional, que procurou conhecer sommeliers, que deve conhecer um pouco sobre vinho, que 'checou' os fatos e 'ouviu o contraditório' (como manda o bom jornalismo - onde isso existe, claro...)

   A pergunta que não quer calar: o que garante que "wall-streeters", em seus ternos de 5.000 dóla (será que existe terno nesse preço? Não conferi...) conhecem algo de vinho? Ô, meu! Você anda num conversível de 500.000, veste um terno de 5.000, um par de sapatos de 2.500, vai a um restaurante cuja comida pode custar... quanto? 500? E pede um vinho de '10'? Na frente do seu chapa igualmente "wall-streeter", que de maneira alguma vai perder a oportunidade de te chamar de mão de vaca e rir na sua cara porque vc sugeriu um vinho de '10'? É isso? O Helinho e o tal do Marcos Nogueira (de onde o primeiro cita ter lido a estória) precisam se dar as mãos e 'estudar'... estudar o óbvio do comportamento humano, antes de querer falar do que o cérebro faz ou deixa de fazer.
   É inaceitável afirmar que "wall-streeters" entendam de vinho porque eles bebem vinhos caros. É assim ó: eles bebem vinhos caros porque eles... bebem vinhos caros! Assim como compram carros caros, ternos caros, sapatos caros e comem em restaurantes caros - ou um restaurante que tem um vinho de alto padrão é um lugar 'barato'? Ah, tá... Portanto, o segundo erro grosseiro é aventar que um ricaço bebedor de vinhos caros tenha o mesmo conhecimento de um sommelier.
   Não menos importante, é sugerir que alguém não afeito às sutilezas dos mais diversos vinhos vá reconhecer que está diante de um grande exemplar. O casal está lá mais interessado em outra coisa, uma conversa legal, o vinho de repente não faz parte do rol de interesses deles, então você poderá servir o melhor vinho do universo, e o fato vai passar em branco.

   Mas voltando: é preciso deixar bem claro esse ponto: o sujeito pega o grupo dos ricaços e usa-o, transplanta-o, para outro grupo, que é o dos sommeliers! E quer ser levado a sério?! O pobre articulista continua:
Estudos de psicologia do gosto, iniciados nos anos 60 por Rose Marie Pangborn, só não acabaram de vez com a reputação da indústria enológica porque não são muito divulgados. Pangborn mostrou que bastava adicionar um pouco de corante a vinhos brancos para deixar os especialistas completamente perdidos.
Na sequência, outros trabalhos revelaram que, em copos escuros, estudantes de enologia não conseguem mais distinguir vinhos brancos de tintos e que basta trocar os rótulos das garrafas para que especialistas rasguem elogios a vinhos "objetivamente" medíocres.
   Novamente, é não é assim. A pobre Rose tomou por grupo de estudo um conjunto de especialistas de verdade ou um grupo de auto-denominados especialistas? Porque sim, o mercado está cheio dos últimos. Associação Disso, Associação Daquilo, Sociedade Daquele Outro... E daí a enologia pagar o pato, aventando-se que seja uma fraude, é apenas o terceiro erro grosseiro do Helinho. Eu não sou capaz de analisar vinhos tão bem, mas dou testemunho do que presenciei na avaliação do Flavitxo Vinhobão. Está aqui, e transcrevo a parte que interessa:
Digno de nota, a certa altura puxei o Flávio de lado e perguntei o que ele achava dos vinhos. Dos dois primeiros (Xisto Ilimitado e Quinta do Crasto Reserva Vinhas Velhas), comentou que o primeiro parecia-se muito com o... Xisto Ilimitado(!), que ele experimentara há alguns meses e achara muito 'justo'. O segundo, identificou como duriense (!), e disse que estava muito bom. Melhor do que o primeiro. O terceiro, achou que poderia ser espanhol (errou). O quarto (Roquette e Cazes), cravou duriense também(!). O quinto era o vinho dele. (grifo meu)
...
Outro fato digno de nota: logo que abri (para os bebedores) o primeiro vinho, o Flávio, com um sorriso maroto - ele chutara para o grupo que aquele poderia ser um Xisto Ilimitado - levanta o dedo e avisa:
   - Então vou reformar minha opinião que dei ao Carlão em reservado. O terceiro é o Xisto Cru.
   E era mesmo...
   Assim, é preciso diferenciar o que são pseudo-sommeliers, auto-entitulados sommeliers e gente competente - e que nem é sommelier. Não está satisfeito? Tem mais uma, que certifico e dou fé. Escrevi em 2014! O diálogo e fatos foram assim:
 - Trouxe esta venda, para que você não possa saber qual a idade do vinho - anunciou Carlitos.
   - Não por isso. É para já! - Flavitxo sentou em uma cadeira e deixou-se vendar. Carlitos tirou a rolha, colocou dois dedos na taça e serviu-a, colocando a base da taça nas mãos de Flavitxo, que levou-a ao nariz e arrepiou-se nos cabelos. Cheirou. Cheirou novamente e proclamou: - Borgonha branco. - daí cafungou, mesmo, e mandou: - Borgonha branco de alto quilate.
   "Canalha" - pensou Carlitos. Malditos importadores dos infernos. Sempre dizem que, em uma degustação às cegas, mesmo especialistas não conseguem diferenciar um branco de um tinto. A única esperança de Carlitos era não entrar no campo de guerra para batalhar no terreno do general adversário. E para evitar o lodaçal, escolhera justamente um branco, o que tornaria a comparação com um tinto mais difícil. Mas o começo não tinha sido exatamente bom...
   - RG da garrafa! - pediu Carlitos, antes que alguém pudesse desabonar sua escolha. Todos riram, Flavitxo retirou a venda e deu uma bebericada:
   - Muito jovem. Estaria bom dentro de mais uns 4 ou 5 anos. Mas está bastante bom dentro da minha taça, também. Parabéns, meu jovem.
   Don Akira serviu sua peça.
   - Fechado, bastante fechado. Terroso - disse Carlitos. Flavitxo concordou, destacando ainda o álcool aparente. E disparou:
   - Italiano. - (era um Biondi Santi!)

As reações worldwide

   Afinal aqui é o brazio, e o que nossos grandes e importantes jornais escrevem, repercute mundo afora (worldwide). O mundo reclamou da coluna. Por exemplo, a Associação Brasileira de Enologia (quem?!) escreveu uma Nota de Repúdio. Segundo eles, 
Tratar de conhecimento e cultura de povos usando como base um fato curioso de engano de serviço do vinho e reunindo poucas pessoas como justificativa para desprestigiar uma ciência é inacreditável em uma publicação com o porte da Folha de São Paulo e sua história de construção social brasileira. Esta simplificação da realidade tão pouco condiz com as mínimas práticas jornalísticas desenvolvidas ao longo dos anos e defendidas, mesmo pela Folha, em seus muitos Manuais de Redação, que serviram de referência para o jornalismo brasileiro. A coluna também trata com o mais alto desdém, por consequência, as milhares de famílias e profissionais que diariamente atuam com afinco e amor em todo o setor vitivinícola do Brasil e do Mundo. Assim, a coluna ainda causa enorme desserviço às comunidades que da cultura do vinho e da sua ciência sobrevivem. (grifo meu)
   Assim, a base do argumento do pessoal é um sentimentalismo que beira o tolo. Vinho é um negócio. Exige afinco, sim. Amor, só se for possível. Mas não é minimamente necessário para seu desenvolvimento. Notamos que as reações também são bem típicas de quem não parece saber direito seu papel nesse universo. Exigir retratação? Alguém parece não ter algo melhor a fazer. 
   - O Helinho! - dirão em uníssono. 
   É, ele também... Mas no dia em que nos preocuparmos de fazer vinho em vez do que vem engarrafado nas garrafas que ostentam esse rótulo, não teremos tempo para ficarmos como umas franchonas enfurecidas porque pisaram em nossa sombra.

2 comments:

  1. Excelente postagem, Big Charles! É claro que tem cara que exagera nas impressões, mas daí, não saber se está tomando branco ou tinto, já é demais. E por mais que não sejamos especialistas, ainda conseguimos identificar as coisas. Realmente, o artigo na Folha é superficial e, a meu ver, sem lógica.
    Abraços,
    Flavitz

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  2. Então... o duro é que essa turma tem 'tradição' em escrever besteira... fiquemos por aqui...

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