Monday, July 23, 2012

É o terroir, estúpido

   Muitos podem lembrar-se daquela frase mas desconhecem seu autor. É a economia, estúpido, bradava James Carville na campanha de Bill Clinton em 1992. A mensagem apontava que o importante para os eleitores é a economia. Se o eleitor tem emprego, a eleição está garantida. Esse brado foi repetido à exaustão e não faltaram seguidores a criar variações que levaram seu conteúdo a declinar para o deslavado clichê. Então, vamos produzir mais um...

Dois vinhos iguais, de planetas diferentes

   Há algum tempo, vinha querendo realizar esta experiência: degustação às cegas de dois vinhos do mesmo produtor que diferissem apenas na safra... mas com uma patente mudança em sua produção. Até sabia claramente qual seria o vinho, mas antes deixe-me o leitor recuperar um comentário genérico que tenho feito aqui no blog. Já mencionei o caso da baunilha, que tem entrado na produção de vinhos de vários países, e para mim tem como único efeito descaracterizar o produto. A baunilha - para mim - tende a esconder as características do vinho, a ponto de mascarar-lhe a procedência. Assim, um dos meus queixumes tem sido contra vinhos que chamo de "apátridas", porque não consigo ter a menor noção de onde ele pode ser. Esse fato nada mais é do que uma descaracterização do tão falado e (às vezes) pouco compreendido terroir.

   Com quatro provadores para o evento, além de duas convidadas, apresentei dois decantadores com safras diferentes do mesmo vinho. Para os mais experientes, a cor evidenciou de imediato a diferença de idade entre ambos. Ponto para os provadores. 
   Na boca, o Flávio do Vinhobão - blog que nesta semana completa dois anos de existência - chutou mais ou menos na hora: 
   - O número 2 tem baunilha... e a uva parece ser Touriga... - no que eu cobrei de imediato: 
   - Nacional ou Franca?
   - Nacional. - respondeu ele, sem vacilar.
   Hum... não é que o safado tinha acertado? Ok, em frente. O Akira-narizinho-de-ouro (rs) opinou que o  vinho número 1 poderia ser chileno. O Akira tem um ótimo nariz, e eu sabia o que estava por vir (e aconteceu mesmo, exatamente assim): com algum tempo a mais de decantação - 15 min antes dos convidados chegarem e mais 5 min após a chegada - o Akira corrigiu:
   - Não é chileno.
   O Romeu limitou-se a dizer que o vinho número 1 tinha mais madeira, o que conferia melhor caráter; o vinho número 2 ele classificou como mais fraco.
   O tempo passou, a ascensão do vinho número 1 tornou-se cada vez mais evidente e ele ficou, na opinião de todos, melhor do que o número 2. Mas o Flávio não identificou a Touriga no vinho número 1, nem o Akira identificou essse vinho, apenas disse que era europeu, sem saber dizer o país. Pela uva, o vinho número 2 estava devidamente enquadrado. Ninguém notou nada em comum entre os dois decantadores, e a avaliação terminou por aí. Finalmente, deixei cair a cortina.
Vinho número 1 (esq.): Flor de Crasto 2006 (12,5% de álcool).
Vinho número 2 (dir.): Flor de Crasto 2009 (14,0% de álcool).
Ambos contendo Tinta Roriz, Touriga Franca e Touriga Nacional, com fermentação em cubas de inox.

   A evolução do Flor de Crasto 2006 foi bem comentada - essa é uma das qualidades que eu mais gostava nesse vinho que é considerado simples por muitos, mas que eu sempre gostei justamente pela evolução. A baunilha evidente no Flor de Crasto 2009 deixou-nos mais intrigados. Ora, a baunilha vem da tostagem das barricas de carvalho americano, mas... os iniciados sabem - e já mencionei na própria descrição dos vinhos - que o Flor de Crasto (e o próprio Crasto Douro, na verdade) não estagiam em barrica... o que nos leva à conclusão de que essa baunilha foi "colocada à mão" no processo.

   Ficou evidente que um vinho não tinha nada a ver com o outro. E agora farei jus ao nome do blog e começar com as chatices. Ficou também evidente que vários produtores estão se ajustando a uma forma padronizada de produzir vinho. Quem sabe, para o consumidor médio, "tanto faz, desde que produzam um bom vinho". Tudo contra! Por que é vamos nos render a "tendências" (os americanos apreciam vinhos com baunilha, e tais vinhos normalmente são melhores pontuados pelos avaliadores) e sacrificar o que o vinho tem de mais interessante, que é seu terroir, sua tipicidade?


"Um mago devia saber que isso não se faz!"
Essa frase é de Barbárvore, personagem do livro O Senhor dos Anéis
e aplica-se direitinho aos  nossos digníssimos enólogos. Ei, acordem...

   Diversos vinhos espanhóis (a maioria dos vinhos de baixo custo da GrandCru) e vários argentinos (o Alma Negra é só um exemplo) também estão entrando nessa dança de vampiros - e não é "para o bem ou para o mal"... é para o mal! - onde a turma quer chupar uma receita milagrosa que fará seu vinho melhor ser aceito no mercado (americano). Para ser franco, não detectei essa tendência nos chilenos, mas meus estoques reguladores ainda me garantem alguns meses de chilenos safras 2006-2008. Se alguém notou a presença de baunilha de maneira mais marcante nos vinhos chilenos, eu gostaria de saber.

   Melhor para por aqui... as citações de bons autores é sempre bem-vinda. Se eu fosse começar a me citar para qualificar algumas "tendências de mercado" a imagem do blog estaria comprometida (rs!).

2 comments:

  1. Isso aí Carlão! Valeu a experiência.
    Só uma notinha: Algumas uvas, per si, geram os aromas de baunilha, como é o caso da portuguesa Alfrocheiro Preto. Isso pode enganar.
    Ah, você esqueceu de falar sobre o Xabec? É um vinho interessante (embora um pouquinho doce para o meu gosto, mas bem feito).
    Abraços,
    Flavio

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  2. Flávio, não me esqueci dele não. É que esse post ficou um pouco extenso e também pretendi deixar apenas esse assunto em pauta. Em breve comentarei o Xabec em comparação com outros espanhóis da GrandCru.
    []s,
    Carlos

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