Saturday, January 23, 2021

A mula sem cabeça, a cabeça do bacalhau e outras estórias

Introito

   Todos já ouvimos falar das Grandes Verdades que norteiam a existência e experiência humanas: o big bang, Deus, o fim do mundo, a infalibilidade do Papa, e a principal e mais importante delas, a verdade de que importadores são energúmenos. Também já ouvimos falar dos mitos: o mito da Caverna, do Dilúvio, os mitos cosmogônicos, Tor, Jesus, Buda, Batman, etc. E, finalmente, já ouvimos as estórias infantis de criaturas ou objetos comprovadamente inexistentes: o Boi Tatá, a Mula sem Cabeça, o Saci Pererê, o Boto Cor de Rosa e, por último mas não menos importante, o Crème brûlée do Flavitz. Encontrei-me com um deles na semana passada... surpreendam-se com a leitura... e já adianto que não foi um encontro bom o Boi Tatá...

Um evento despretensioso

   O Ghidelli tinha avisado: a filha voltaria de Portugal, e tinha um espaçinho na mala. Foi o suficiente para tentarmos - com sucesso! - acomodar 6 garrafas no exíguo espaço que gentilmente nos foi oferecido pela mocinha. A seleção ficou a cargo do Don Flavitxo, que se esmerou na tarefa (entenda-se: escolheu umas tralhas das quais nunca tinha ouvido falar...). Passado mais de um mês, tempo mínimo para o vinho descansar da viagem, fizemos a primeira reunião. O anúncio foi de cordeiro. Imaginei que Chianti fosse uma boa pedida. Conferi no Wine-Searcher e constatei que sim... e tinha o danadinho na alça de mira fazia algum tempo... Comunicado, o Ghidelli achou que já tínhamos 'muito vinho'. Foi a deixa para Don Flavitxo comparecer com mais um de seus branquinhos nojentos a título de entrada. O Ghidelli ainda aprende...

Primeiro ato: entrada

 
Não foi apenas Don Flavtxo quem se esmerou. A Márcia também, principalmente nas entradas. Pena que serviu-nos, experimentou um pouco de vinho e recolheu-se, deixando-nos abandonados e sozinhos com um uma maravilhosa entrada de queijo Brie com mel e lascas de amêndoas. Ao forno, acompanhado com extremo cuidado, estava no ponto quando foi servido: o queijo no limite de bem amolecido, o mel apenas um pouco quente e o acompanhamento de pão artesanal. Tivemos ainda um inesquecível figo com presunto parma, que só deixou uma dúvida: ainda não sei dizer quem estava melhor... Don Flavitxo não perdeu o tempo e já apresentou seu branquinho nojento: Um Vouvray produzido com a uva carro-chefe da região, a Chenin Blanc. Seu produtor é o Domaine Guy Saget.
Domaine Guy Saget Vouvray 2015 é um vinho que - dizem - carrega toda a tipicidade do Loire. É doce. Não o doce de sobremesa a que estamos acostumados (exclusivamente de sobremesa, embora também possa ser empregado como tal), mas o doce que acompanha muito bem uma variedade de pratos, desde a entrada até a própria sobremesa. Pois é... essa é a característica dos vinhos do Loire que a maioria dos bebedores - eu também... - não presta a devida atenção. Genericamente os Vouvray são coringas.... servem para tudo. Enquanto eu proclamava aos quatro ventos que era um branquinho nojento, Flavitxo defendia-se dizendo tratar-se de um bom produtor do Loire. Não duvido: o vinho de fato é delicioso: pareceu ter mel, frutas e um toque cítrico. Excelente acidez, toque mineral, tudo muito equilibrado, e casou muito bem com a entrada. Pena que lá fora seja um produto de aproximadamente 12 'dóla' (menos de R$ 70,00?), enquanto aqui chegue a R$ 230,00. Apesar da lamúria, esse foi só o começo...
Para acompanhar a entrada, outro coringa: O Buçaco Rosado 2018. Um Rosé (óbvio...) da Bairrada, produzido com a principal uva da região, a Baga. É vinificado pela Niepoort, um grande produtor de Portos que possui também diversos projetos em distintas regiões portuguesas. O Akira cafungou, cafungou e canfungou, terminando por apontar notas de... morango(!) e tinha mesmo... Bom frescor, boa acidez, também foi ótimo par com as entradas. Registre-se a pouca afinidade deste travesti de blogueiro com rosés. Continuo não gostando, mas é impossível não registrar que seja um ótimo vinho. Tem elegância, é equilibrado, combinou bem com todos os pratos. Apenas não me seduziu. Dentre minhas boca-tortices (sic), a de continuar à procura de um rosé que possa ser um ponto de virada ainda está por acontecer. É um vinho dos seus 35,00 Euros. Seu preço por aqui beira os R$ 900,00, o que justificou bastante sua inclusão na lista. O importador pode enfiar as garrafas que trouxe no meio da sua ideia do que seja 'mercado' de vinhos e que continue a vendê-las para os trouxas de plantão.

Prato principal

Vacilei na foto! 😟, daí que teremos de ficar somente com os vinhos. O escalado pelo Ghidelli foi o Quinta do Mouro 2013. Um vinho de Estremoz, cidade na região do Alentejo, corte algo inusitado de 55% Alicante Bouschet, 25% Aragonez, 10% Touriga Nacional e... 10% Cabernet Sauvignon(!). Nariz com fruta vermelha e mais notas que escaparam ao nariz deste Enochato mas foram bem destacadas pelo grupo. Algo na direção de café ou couro, para mim. Boca muito agradável, apesar de taninos ainda um tanto verdes - precisa de mais tempo em garrafa. Boa acidez, madeira e álcool bem integrados fazem um conjunto muito agradável, mas a impressão de que erramos um pouco a mão no momentum ficou no ar. É um vinho onde nota-se facilmente a potência - união de 14% de álcool com boa acidez mais taninos - e a elegância de mãos dadas. Acho quem mais cinco anos estará pronto. Antes, tem um nome: infanticídio... Na safra 2013 custa 'lá' 60,00 dóla. Aqui, nas safras 2015 e 2017, custa R$ 720,00 para o tar (sic) do 'confrade', e R$ 850,00 para o 'não-confrade. Você provavelmente seja 'não-confrade', assim como eu... também pudera, nesses preços não quero ser confrade de coisa alguma... Aquisição bem justificada, também. Da minha parte, tendei defender-me com um um chiantezinho, o Chianti Classico Fattoria di Felsina "Berardenga" 1999. Seu preço aqui é R$ 870,00 (safra 2012, que 'lá' custa cerca de USD 40,0...). Se a 2012 aqui já 'é' (sic) R$ 870,00, acho que a 1999 poderia ser dita... priceless (chique, heim?). Lembro sim que paguei por aí, uns US$ 45,00, há 10 anos... daria algo como R$ 100,00 a dóla da época... Hoje essa safra custa USD 100,00 lá fora. Conta de padeiro, seu preço aqui seria, na proporção, por volta de R$ 1.600,00. Um nojo... Ou, como diria, priceless... Bem, Fattoria di Felsina é considerado um baita produtor, e seu Berardenga é um 'vinhão'. O que mais dizer desse exemplar com 21 anos? Pronto pra beber, com jeitão de poder ser guardado por mais tempo. Não tenho tanta experiência, mas lembrou-me um Brunelão. Note: não um 'Brunelo', um 'Brunelão'! Don Flavitxo comentou - claro, com toda razão - que a uva é a mesma. A vinificação não. Mas olha, lembrou 'Brunelão'. Fruta negra, especiaria, um defumado de fundo, mas tudo bem presente e marcado. Corpo médio, mas muito vivo, uma 'potência elegante' dada pela ótima acidez e taninos muito bem definidos. Álcool (13,5%) imperceptível, traço de madeira, no sentido de otimamente integrada. Um vinho FVE, felicidade Verdadeiramente engarrafada. Mesmo pelos 100 dóla de hoje, vale cada centavo, entrega felicidade a cada cafungada, a cada gole.  Os dois vinhos combinaram à perfeição com o cordeiro... acho que nunca participei de uma harmonização tão bem preparada. Prova de que estava tudo perfeito foi o fato de que esses dias tive (mais) um perrengue com Don Flavitxo via uatizápi. Ele saiu-se com essa: - Só não brigo com você porque aquele Chianti estava duc@r@l...

A aparição da Mula sem Cabeça

Indo para o final, eis que surge a Mula sem Cabeça, digo, o Crème brûlée de Don Flavitxo. Conhecido e respeitado desde os melhores bistrôs de Paris até Aldebarã, há eons venho ouvindo promessas de que ele seria servido... e nunca... Mas chegou o dia.

Maçaricão na mão, paciência infinita, lá foi Don Flavitz 'temperar' sua iguaria, um total de 6 belíssimos exemplares. O anfitrião não deixou barato, e compareceu ainda com um Vidal Icenie 2014, da Lakeview Cellars. Produzido na região do Niágara, custa 'lá' seus 25 dóla e não tem representante no Brasil. Ainda bem, não passamos raiva... a raiva fica guardada para 'depois'; por enquanto estamos no terreno da felicidade. E "felicidade", mais uma vez, foram o prometido e o entregue. Notas de mel e cítricas muito bem definidas e acidez integrada, casaram à perfeição com o Crème brûlée de Don Flavitxo. Acho que tirando Berardenga, não foram os melhores vinhos que já bebi na vida, mas seguramente foi a melhor harmonização da qual jamais participei... preciso tentar outras dessa... Fini.






























Post scriptum

  Don Flavitxo vem se convertendo em um detrator do blog. É divertido, gosto de argumentar. E olha que já faz algum tempo. Ele vem lendo o blog linha a linha (duas vezes 😂), procurando pelo menor erro. Acho muito saudável, inclusive fico feliz em contar com uma 'revisão' de tamanha qualidade: Don Flavitxo conhece sobre vinhos há 30 anos, época em que este travesti de blogueiro bebia Ypióca e dizia que uma 'boa' (sic) cachaça era comparável a um uísque escocês 😳. Vemos que este articulista não renega seu passado, sua ignorância nem seus erros. E a isso chamamos honestidade intelectual. É para poucos, e, acrescento, infelizmente.
   Recentemente, Don Flavitxo apontou o segundo erro verdadeiramenta grotesco de minha parte, e provocou, perguntando se eu teria coragem de escrever uma errata. Vide, https://oenochato.blogspot.com/2020/12/o-meu-vinho-foi-melhor.html. Ah, e o meu vinho foi melhor mesmo. Costumo consultar a literatura, por não conseguir guardar tudo - grave pecado... 😝 -, mas a um dado momento confiei demais na memória. Paguei por isso.

Desta vez, Don Flavitxo indignou-se porque chamei o Quinta de Mouro de Quinta do Mouro (sic! risos!). Vamos lá, com calma. O Quinta do Mouro que bebemos é o Quinta do Mouro Rótulo Dourado. Foi assim mesmo que encontrei no Wine-Searcher (https://www.wine-searcher.com/find/quinta+mouro+rotulo+dourado+regional+alentejano+alentejo+portugal), porque tenho o cuidado de sempre conferir o rótulo do vinho e seu preço, para não cometer erro na avaliação o produto. Inicialmente achei estranho que o próprio Wine-Searcher apresentasse o rótulo dessa maneira, Rótulo Dourado'. Não bastasse isso, o próprio sítio do produtor apresenta o vinho dessa maneira, Golden Label. Mas... no rótulo do produto - vide postagem principal - isso não é destacado(!)😵. Então, vamos lá: o produtor não enfatiza seu principal vinho com a atenção que ele merece, além de um discreto 'Dourado' no contra-rótulo... e vou eu ficar 'babando ovo' para isso? Destaquei eu preço, 60 Euros, o que dá a dimensão de sua importância para quem percebe tais sutilezas. Então, deixemos claro que sim, notei o vinho que tinha em mãos (e boca). Apenas não aceito que tenha sido um erro em sua apresentação, porque simplesmente não foi. Aliás, Don Flavitxo voltou a atacar, desta vez escrevendo em italiano no comentário, como se falasse em nome do produtor. Foi realmente engraçado. Está aqui, https://oenochato.blogspot.com/2021/02/um-brunellinho-honesto.html.

7 comments:

  1. Onde está o Wally?

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  2. Olá,
    eu já vi cabeça de bacalhau. Também tinha curiosidade, mas uma vez que fui a Portugal pude apreciar uma sopa muito gostosa que fazem com ela. Esse tal de creme Bruile não é tipo um mingau?
    Sds,
    Pedro Ernesto

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    1. Acredito na sopa. Não na cabeça de bacalhau! (risos!)

      Então... o Crème Brûlée de Don Flavitxo não tem nada de mingau, está mais para um mousse. Mas em algum lugar - depois de ouvir da provocação do Crème Brûlée por anos e anos sem experimentá-lo, provei em algum restaurante, não lembro qual. Não tinha tanta consistência - mas também não era mingau. No mais, não saberia dizer... mal conheço de vinho... 😂

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