Friday, August 8, 2025

Um ligeiro atropelamento

Introito

Qual país pode ser pior do que um onde roubam seus velhinhos?
Aquele onde roubam os velhinhos duas vezes.
Oenochato

   Poucos se lembrarão do Caso Jorgina de Freitas, perpetrado contra a previdência entre 1988 e 1990. Foi um desfalque de mais de 300 milhões de dólas (à época; corrigindo o valor, hoje seriam 777 milhões de dólas, ou R$ 4,22 bilhões). Foi dinheiro de aposentadoria - dos velhinhos - indo para o bolso de gente jovem. Em abril passado a Operação Sem Desconto foi deflagrada para "combater um esquema nacional de descontos associativos ilegais em aposentadorias e pensões". Ou seja, novamente os velhinhos foram aliviados em alguns tostões (8 bilhões). O que fez Nosso Amado Presidente (NAP)? Nada(!). Em vez de repor imediatamente os valores desviados ao longo de todo seu mandato, sua administração entrou com um pedido junto ao STF para que os processos de indenização fossem suspensos. Um governo verdadeiramente voltado para os pobres deveria  antes de tudo proteger os pobres. Em vez disso, NAP simplesmente negou-lhes o direito de processar o Estado em busca de reparação. Gostaria de perguntar ao eleitor de NAP: foi nesse projeto de país que você votou quando fez o 'L'?

O Passadouro e o Valduero

A Débora enviara mil desculpas pelo não, mas na hora fatal voltou atrás e foi direto ao ponto: - Aquele convite ainda está em pé? Claro que estava... e para não se fazer de rogada, chegou dez minutos mais cedo e com uma taça na mão 🤣. Alguma entradinha sem preocupação em harmonizar, e constatamos: um tanto fechado; embora exibisse fruta, sua manifestação era contida. Algo como pimenta também presente, mas não era aquela pimenta de madeira. Boca com taninos nervosos, acidez média, álcool (14,5%) sem incomodar, mas faltava harmonia ao conjunto. Don Flavitxo avisou, quando comentei-lhe sobre a oferta (R$ 200,00): é um vinho longevo... Passadouro Reserva 2016, duriense, não está dando mostras de ter amolecido - provei dele alguns anos atrás por ocasião da compra, acho que não postei, e lá estava fechadão mesmo. Note: foi aberto na noite anterior. Dormiu na geladeira, e alguma suavizada deveria ser observada. Qual nada... mais alguns anos de repouso para as garrafas restantes. Antes de seu final havíamos acordado: faltaria vinho. Desci para a adega, à procura de alguma opção de serviço rápido. Preocupado, coloquei a mão em um escaninho e para alívio e surpresa sai um Valduero Crianza 2016. Acreditava ter bebido a última garrafa, mas havia uma derradeira. Salvo! No pouco tempo de aberto já dentro do balde com gelo, saiu com aromas muito agradáveis roubando da Débora um sorriso alegre e feliz, seguido de um Isso sim... E concordo: fruta, um toque herbáceo, madeira (de leve) e outras notas (chocolate?) com ótima boca: acidez adequada, taninos redondos, álcool discreto, dulçor discreto, tudo certinho, como se espera de um bom vinho. Ótimo momento para ser degustado; se o tiver, vá em frente. Ambos foram comprador em ótimas 'promos', com preços bastante convidativos. Sem gastar muito tempo comprovando os dados, Passadouro Reserva é um vinho uns USD 45,00 em Portugal e aqui pode ser encontrado por algo como R$ 240,00 (eventualmente não informam a safra), ótima compra. Mas teje avisado: se for posterior a 2016, fatalmente estará menos pronto do que o exemplar degustado. Valduero pode ser encontrado a R$ 370,00. A versão Crianza deu lugar à Valduero 2 Maderas, e custa lá fora uns 25 dólas.  Está um tanto tubaroneado...

Um ligeiro atropelamento

Era quase aniversário da Liu, e ela passou num domingo para uma confraternização adiantada. Com um encontro para início das comemorações programado para o sábado seguinte, declarei aquele dia como festivo, e escolhi uma peça digna do momento: o Brise Cailloux 2015, um Cornas do Domaine du Coulet. Aerado algum tempo - não lembro quanto, talvez uma hora - chegou explosivo, com muita fruta negra, especiaria e mais toques. Boca ótima por conta da estrutura casando com a acidez, taninos redondos e álcool à 14% bem integrado ao conjunto, com um dulçor discreto. Pegado e elegante, faz meu tipo de vinho. Se o leitor considerar a postagem passada, onde reflito sobre a questão do vinho mais elegante e do mais encorpado, Brise Cailloux está na categoria fora da curva por apresentar ambos. Tem longa permanência em boca, longa mesmo: conversando, rindo e aproveitando aqueles ótimos momentos, notamos como ele permanece atiçando as papilas, fazendo-se presente, estimulando o próximo gole. É um 100% Syrah proveniente de Cornas, norte do Rhône, onde essa cepa realmente alcança um dos pontos altos de sua expressão. Sobrou um tanto, e não bebi na segunda-feira. Adivinhe. Sim, os Paduquentos caíram de joelhos enaltecendo Baco com fervor e devoção renovadas quando um tantinho caiu em suas taças, e o primeiro buquê subiu-lhes pelos narizes, na terça-feira: Brise Cailloux ainda estava inteiro, maravilhoso - foram eles quem opinaram sobre a fruta mencionada anteriormente. Para não fazer feio (não?), ofereci-lhes um Sassoalloro 2021, produzido pelo Jacopo Biondi Santi em seu Castello di Montepo localizado em Maremma, região costeira da Toscana, mais precisamente na DOCG Morellino di Scansano. A cepa principal por ali é a Sangiovese (mínimo de 85%), e parece seguir a mesma base de corte presente em Chianti e Vino Nobile di Montepulciano (Canaiolo, Colorino e outras). Em Sassoalloro, bem apontaram os confrades, a fruta era vermelha, com boa complexidade. Boca equilibrada, alegre, mas notas abaixo de Brise Cailloux; ficou um toque anticlimático, pois normalmente servimos o vinho mais simples primeiro. Ainda assim tem suas qualidades; podemos dizer que é um vinho para ser apreciado, eventualmente. Mas é inegável: Sassoalloro tomou uma amassada de Brise Cailoux e não foi de leve não senhor; deu-se quase como o atropelamento de um Fusca por um FeNeMê carregado com 200 toneladas, uma diferença de qualidade extravagante. Uma análise dos valores elucidará a questão, bem como deixará exposto algum constrangimento. Não é culpa minha...

   Brise Cailloux é importado pela De La Croix e em sua safra 2018 está custando R$ 588,00. Nos EUA, a safra 2021 custa USD 70,00. Dá R$ 380tão. Curiosamente encontrei um Sassoalloro na mesma loja e na mesma safra degustada, e ele custa algo como USD 38,00, ou R$ 206,00. Fazendo aproximações generosas, Brise está em uma relação 2 x 1 em valor; cumpre sua tarefa de ser um vinho bem melhor pelo dobro do custo. O problema é que por aqui Sassoalloro está R$ 488,00, o que dá 2.33x (nem é uma margem tão alta, mas para mim está acima do limite aceitável; como apareceu em 'promo' e há algum tempo por R$ 245,00 - ótimo preço! - comprei 3 garrafas). Então a ladainha se repete: o consumidor, desavisado, compra mal. Paga uma fortuna pelo vinho e de repente seu representante é massacrado por um de valor somente 20% maior. Fica evidente como a boa compra em uma importadora honesta valoriza nossos suados cruzeiros face a compra do produto de uma importadora tubarona. A comparação via Wine Searcher nunca falha, não é mesmo?

Comprovando...

   Sassoalloro e Brise Cailloux encontrados na mesma loja, nos EUA. Diferença próxima a 2x. Confesso ignorância sobre o Domaine du Coulet com base em minha escassa literatura; o produtor não é referenciado por ela. Comprei o exemplar confiando na curadoria do sempre cuidadoso Geoffroy De La Croix, que não conheço mas sobre quem ouvi algumas estórias do Daniel quando ele era gerente da De La Croix. Parece que a nova direção não seguiu a tradição de bom atendimento, infelizmente, mas recomendo o importador acima desse problema.




   Brise Cailloux e Sassoalloro por aqui. O primeiro em 1,55x comparado ao preço , outro em 2.33x. De quebra, o perfeito exemplo de quando o marketing sobrepuja a qualidade. Particularmente, acho tudo isso excelente! Enquanto houver pessoas idiotizadas - em todos os sentidos! - mundo afora, os adoradores de vinho que buscam informações sempre provarão do melhor pagando menos. O chato é quando a estupidez não mexe somente com o bolso do otário, contaminando decisões cruciais para a própria civilização.





Saturday, August 2, 2025

Don Flavitxo e as Malucas

 Introito. São Luiz do Anauá, RO. População: 7.300.

   Dizem que a imprensa é corrupta, vendida, pelega, fala mal do governo de plantão quando não recebe (generosas) verbas de propaganda, portando-se de maneira oposta caso contrário. Posso falar por mim, e apresentar a trajetória do blog: denuncio a tubaronice de importadores de vinhos há anos, mesmo sob ataque (risos!) de puxadores de samba saco cujos comentários até tempos atrás apareciam na moderação. Sempre foram combatidos com argumentos, menos quando tentaram falar de política, já que por princípio esse assunto não está em debate. Um, mais criativo, perguntou se determinado vinho 'ia bem com lula'. A resposta despertou seu senso de honestidade intelectual, e ambos rimos com a situação. Trégua passada, voltamos a nos digladiar. Recobrando a primeira frase deste parágrafo, ofereço a reflexão: já ouviu falar de São Luiz do Anauá, em Roraima? Se ouviu, então está óbvio: a imprensa está cumprindo seu papel... porque o menor município desse estado, com apenas 7.300 habitantes, recebeu, entre 2021 e 2024, a bagatela de R$ 109.000.000,00 em emendas parlamentares, tornando-se a cidade que recebeu o maior valor de verbas por habitante em todo o país. Ainda assim, e em um imbróglio mal explicado, a posição atual da cidade é falimentar, devedora de débitos acumulados em R$ 52.000.000,00. O assunto é antigo (março de 25), e a própria Assembleia Estadual abriu uma CPI para apurar o caso. O ex-prefeito e pivô da ação é do Partido Solidariedade - até ontem na base do Governo Federal -, e atualmente capitaneado pelo Paulinho da Força, impoluto cidadão de conhecida trajetória política: candidato a vice-presidente e diversas vezes candidato à Prefeitura da cidade de São Paulo, além de vitoriosas campanhas ao Legislativo Federal. Não tenho TV, mas repito: se a imprensa mostrou o Presidente do Solidariedade manifestando sua preocupação quanto aos fatos - a falência municipal é incontestável; a apuração dos culpados é outra estória - então ela novamente cumpriu seu papel. Paulinho não se pronunciando voluntariamente, a obrigação dos jornalistas seria apurar os fatos - onde está a tal imprensa investigativa? Agora... 🙄 se você não está sabendo do que falo... pelo menos recorde-se comigo: já ouvimos muito mais barulho por muito menor escândalo. E nesse caso possivelmente a imprensa não está fazendo seu trabalho. Nosso Amado Presidente (NAP), que prometeu, dentre tantas coisas, acabar com sigilos de gastos presidenciais herdadas da administração anterior não o fez. Mas foi pródigo em juntar-se a pessoas de currículo duvidoso, e os escândalos - como o dos velhinhos, para citar outro e poder usar o plural - avolumam-se. Onde está NAP agora, para bater no peito e dizer aos brados: Mea culpa, mea maxima culpa? Bem... sabemos que português não é com ele - nem com o Xandão! -, o que dizer de latim? Enquanto isso, enfraquecida em um leito hospitalar possivelmente digno de Anauá, a Pátria definha. Foi nesse projeto de país em que você, que fez o 'L', votou?

Outros vinhos

Há não muito tempo provei um Terra di Lavoro 2010, e sabia da existência de outro exemplar na safra 2009 - a estória do colecionador desfazendo-se de sua adega. Não foi difícil convencer as Malucas a entrar na brincadeira, e a aceitar Don Flavitxo como convidado especial deste Enochato: leitoras assíduas do espaço, estavam verdadeiramente curiosas para conferir a existência do mítico bebedor que volta e meia menciono como meu principal mentor nas sendas a Baco. E no dia marcado estava lá o lépido Flavitxo com seu sorriso generoso, cativando a todos com suas estórias. Para agradar a tão ilustre companhia, a Maluca ofereceu uma xampa do Philipponnat, a Royale Brut Reserve. Sempre uma ótima escolha, facilmente eclipsa os concorrentes mais simples como Veuve Clicquot, Piper-Heidsieck e  Taittinger, embora custe sim um tanto a mais. Mas em uma boa 'promo' a diferença pode cair a níveis onde vale investir pela pequena diferença, então fique atento. Philipponnat é muito elegante, combina toques bem cítricos com notas florais e fermento; tem belo equilíbrio e nesta safra 2015, com dégorgement em agosto de 2019, está ótimo e apto para ser degustado. Não conheço tanto sobre xampas, e por isso não arriscarei quanto tempo mais pode envelhecer. Mas está em ótimo momento para consumir...

Como pode ser conferido, nessa safra foi um corte Pinot Noir (65%), Chardonnay (30%) e Pinot Meunier (5%) - a composição varia de safra a safra - e por alguns momentos as Malucas refletiram se não valeria a pena Philipponnat sobre as opções mais simples, como já comentado. É isso mesmo, foram de encontro à minha reflexão de que, em 'promo', a diferença pode não ser significativa. Está este Enochato incumbido de ficar atento à próxima oportunidade. Missão que será levada a cabo com o maior denodo e respeito pelas preferências das confrades. Sem esquecer do Mário como parte das Malucas, além deste escriba, quando uso o nome genérico Malucas para o grupo...

   O Terra di Lavoro 2009 estava como 2010: explosivo, pegado, muita fruta e outras notas, encorpado e estruturado. Recupero sua prova aqui, pois os resultados são similares. Don Flavitxo nos encantou com um Viña Arana Gran Reserva 2015 da La Rioja Alta, grande produtor espanhol. Também tinha bom corpo, acidez viva mas estava visível como a pegada era mais leve e graciosa. Frutas em camadas, especiaria, aquele toque chocolate/café (qual?), madeira discreta e integrada, tudo muito elegante, com maravilhosa persistência a alegrar os bebedores, e recordei-me de como o Il Bosco do evento anterior mostrara-se um vinho superior. Sim, Arana - junto da experiência prévia - raiou como um ponto de virada em minha percepção de vinhos mais elegantes sobre aqueles potentes. E tenho mais uma abordagem a validar: já escrevi em algum momento sobre como bons vinhos defenderem-se bem quando encontram outro igualmente significativo pela frente. Repete-se o mesmo entre Arana e Lavoro: o segundo tacou sobre o primeiro toda sua esplêndida potência mas não o sobrepujou; em uma cinesia discreta Arana alojou-se em um ponto mais alto e brilhou sozinho. Vivo e aprendo. Explico melhor: conscientemente, trocarei os vinhos pegados pelos elegantes, de agora em diante. Eles podem ser bons, ter seu apego, mas quando o bebedor percebe essa sutileza como algo mais palpável, a lembrança do maior requinte de fato sempre permanecerá na lembrança. Tento explicar melhor ainda: simplesmente caiu a ficha.

   Por sobremesa levei um passito que há tempos aguardava a oportunidade de molhar gargantas dignas... e encontrou nas Malucas a hora perfeita. Scacco Matto 2007, produzido com a variedade Albana pela Fattoria Zerbina, na região de Emília-Romagna, mostrou toques cítricos, damasco e mais notas. Alguém teria dito mel? Acidez adequada contrabalançando o dulçor e boa persistência completaram bem a noite. Como disseram os confrades, teve bão. 

   Esta postagem foi tocada a um Passadouro Reserva 2016. Havia provado uma garrafa há algum tempo, e estava bem fechado. Seus exemplares mais simples, Tourigas Franca e Nacional 2018 estavam bem prontos no ano passado, mas não ele. Passadouro Reserva está chegando a seu ponto, embora tenha evolução pela frente. Aerou por mais de duas horas e agora, entrando na quinta, mostra fruta contida e especiaria, com acidez e corpo médios. Ficará um tanto para amanhã. Vejamos a conclusão.