Saturday, February 25, 2023

Não vi, não sei, não comungo

Introito

Reporta-nos O Antagonista que o Ministério Público do Trabalho resgatou 180 (parece que o número é maior) trabalhadores mantidos em situação análoga à escravidão. Contratados como simples terceirizados para fazer a colheita das uvas, laboravam para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. As vinícolas foram rápidas em posicionar-se:

A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.

Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada. Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia.

A Família Salton repudia veementemente e não compactua com nenhum tipo de trabalho sob condições precárias, análogas à escravidão. A empresa e todos os seus representantes estão solidários a todos os trabalhadores e suas famílias, que foram tratados de forma desumana e cruel por um prestador de serviço contratado.

  Suas políticas de responsabilidade social estão expressas e assumidas em seus sítios:




   Contudo, diz O Antagonista:

   Percebeu? Os trabalhadores eram submetidos a jornadas exaustivas... Isso só podia acontecer em seus locais de trabalho, ou onde mais? Se não for assim, seguimos na argumentação: essas pessoas trabalhavam lá também (digo, nas vinícolas). Como as contratantes tratavam seus terceirizados? Não trocavam uma palavra - sequer uma reunião de instrução?! Não ofereciam um mísero copo d'água na jornada laboral deles? Como ficam as conversas moles de certificação da qualidade de serviços internos, a vida em harmonia ou a integração dos aspectos sociais em todas as etapas do processo produtivo?! Canalhas! Sendo inocentes nessa estória vexatória, está claro não prezarem o mínimo pelas próprias declarações sobre suas responsabilidades. Não deixam de enganar seus consumidores com essas evasivas! Nisso igualam-se aos importadores safados que nos cobram os tubos por seus vinhos sob alegações já rebatidas neste espaço. No final as velhas estórias de sempre: não vi, não sei, não comungo. Onde é que já ouvimos essa desculpa, mesmo? No mensalão? Imaginava os produtores (não todos!) baixos, pelas estórias antigas de salvaguardas, selo de distribuição e outras. Jamais imaginaria que descessem tanto.

Revendo um velho amigo - e comemorando à altura

Don Nagibin, o bom Palestino, amigo dos tempos de graduação ('83), passou por aqui estes dias. Sentiu a morte do Akira, e remanejou alguns dias de suas férias agendadas desde o ano passado para que pudéssemos nos sentar e reviver juntos alguns momentos com ele e nossos também. Sua esposa Magide conhecia o Akira desde nossa visita ao Chile, ali por 2010, 2011. O varão Mateus era muito novo, então. Sentamo-nos um dia na adega e outro para apreciar um bifão no restaurante Barone. Vou falar desse encontro. Após conversar com Don Flavitxo - não pôde comparecer, infelizmente - mencionei de abrir um Numanthia 2003; ponderei se 24 horas de aeração seria bom. Ele foi liberal (libertino?):


  Uma horinha?! Abrira recentemente outra garrafa de Numanthia em 2020, e a decantara 24 horas. Acho que meu ilustre compadre sisqueceu, ou inadvertidamente pulou a postagem. Desta vez demorei um pouco, e fui abri-la por volta da meia noite, para degustá-la no almoço. Experimentei com Nagib; ele olhou para mim surpreso e murmurou um 'nada' quase desapontado. Respondi com a sugestão dele guardar a impressão para o dia seguinte; e lá pelas 13:00 estávamos instalados no Barone.

Nagib provou novamente e olhou-me curvando as sobrancelhas: 'uau!'. Era isso: a transformação dera-se ainda que parcialmente; Numanthia estava bem mais palatável mas um tanto fechado; muita fruta, muito corpo pelo tanino e madeira, claramente preso, principalmente os taninos ainda pegados. Mais seis ou oito horas fariam diferença? Não estou certo... combinou bem com o prime rib (por aqui carinhosamente chamado de pirulito), porque sua gordura era facilmente lavada da boca pelo gole seguinte; Numanthia é um vinho bastante seco, seco sem dó nem piedade (rs), e não sei quanto isso contribui para a mega limpeza (sic!) que ele promove em boca. Parece que a garrafa anterior, de 2020, estava mais solta... ainda que pese a maior aeração. Velho ditado: cada garrafa é uma garrafa. Sua permanência é verdadeiramente longa - não o 'longa' que dizem por aí sobre vinhos de 50tão - e a acidez é pronunciada. Esse 100% Tempranillo tem janela de beberagem 2006-2016, segundo a Wine-Searcher, o que é um claro erro. Entre 2026 e 2036 estaria mais correto - e a despeito do ditado! Algo teria de dar muito errado para Numanthia amaciar-se em menos tempo. Tivemos ainda um I Giusti e Zanza Belcore 2019, mas ficará no comentário da próxima postagem, com outro vinho, degustado no dia anterior.

A borra, essa incompreendida...

A borra aparece naturalmente em vinhos mais velhos como um acúmulo de sedimento no fundo da garrafa. Servidas junto do vinho aportam um amargor intenso ao sabor, fazendo o paladar discrepar. Ela não altera o sabor do vinho quando precipitada, e por isso garrafas mais velhas não devem ser transportadas ou agitadas e abertas em seguida, pois o perigo da borra misturar-se ao vinho e conferir-lhe um sabor diferente é muito grande. Uma boa providência é usar um decantador, vertendo o conteúdo diligentemente, e observando quando a borra começa a passar para o decantador. Pode-se deixar esse resto na garrafa e os bebedores contentem-se em verter o restante com muito cuidado para suas taças, se desejarem. Certa vez ganhei um fundo de Ferreirinha Reserva Especial em uma degustação realizada dentro da degustação em que participada; havia um preço suplementar para se provar algumas garrafas muito diferenciadas. Grande parte do conteúdo era borra. Tive o cuidado de ir deixando a borra decantar e ia entornando a taça muito vagarosamente para sorver o vinho em pequenas quantidades, enquanto virava a taça para que a borra se acumulasse pela lateral, quando conseguia sorver mais um pouco - veja a foto. Repetia o processo, aguardando que a borra novamente precipitasse no fundo da taça. Foi uma experiência maravilhosa.

Não sabia à época: embora a mistura da borra confira ao vinho um sabor indesejável, ela com um pãozinho fica bem palatável! Aprendi essa com o Akira. E preciso comentar que essa borra proveniente do vinho envelhecido tem sabor diferente da borra nova de vinho não filtrado. Reflito que essa borra do vinho envelhecido é... quanto? Um por cento do conteúdo? Menos, até... se o vinho devidamente envelhecido já é considerado uma exclusividade - ah, quanto boca mole por aí não comete barolicídios, brunelicídios, borgonhicídios e outros cídios sem conta (sic! rs!) - imagine esse 1%, o quão exclusivo é! E descartamos sem a menor curiosidade de ao menos experimentar! Portanto, leitor desavisado, se estiver numa ocasião dessas em alguma degustação, olho no fundo da garrafa! Alguma oportunidade espetacular pode estar sendo desperdiçada por enólogos incompetentes e sem noção do que servem. E, na dúvida, se estiver indo para alguma degustação, seja precavido: leve meio pãozinho no bolso para qualquer eventualidade! 🤣🤪


Para registro,






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