Marcelo Akira Miho 4/2/1975-1/2/2023
Às vésperas de completar 48 anos meu amigo Akira, tantas vezes referenciado no blog e cuja amizade estendeu-se por mais de 20 anos, faleceu devido a problemas renais desencadeados por uma doença autoimune que há três ou quatro anos obrigara-o a parar de degustar vinhos. Se ele não podia sorvê-los, divertia-se analisando-os somente pelo olfato. Como estávamos juntos em várias confrarias distintas, para mim passava por maçante o prodígio de sua capacidade de desvendar vinhos sem levá-los à boca. Não é que acertasse o país... para vinhos bons, de
terroir, costumava acertar a região. Alertado de já ter provado de algum produtor, acertava o vinho.
Aqui o leitor encontra apenas um exemplo das inúmeras vezes em que ele surpreendeu alguns convivas sem jamais expressar a menor ponta de ostentação ou orgulho: humilde, explicava-nos por quais percepções notava a origem do vinho analisado. Recebi esta foto de Don Flavitxo, o Flávio do blog
vinhobão com a seguinte mensagem:
Essa é a imagem é a que quero ter do Akira... Preciso dizer que concordo?
Don Flavitxo, sabidamente um dos meus mentores intelectuais quando o assunto é
vinho - junto do Akira, que trouxe-o para nossa confraria de dois - juntou-se a nós em vários encontros, quando protagonizamos reuniões memoráveis. Com o Akira, bebíamos e discutíamos como cachorros: cada um apontava as ideias estúpidas um do outro recorrentemente na mesma
sentada, ao final das quais brindávamos ao vinho e, sem dizer as palavras, à amizade e respeito mútuos. O Flávio ofereceu nova dinâmica às conversas, porque então brigávamos todos contra todos em separado ou dois contra um, sem ressentimentos, e em qualquer alternância possível. Esse cenário até monótono só era quebrado nas raras vezes em que convidávamos o Romeu: nessas ocasiões, invariavelmente e sem combinar previamente, acabávamos todos contra o convidado que saía dos encontros devidamente espinafrado mas igualmente feliz. As profundas divergências em nossas visões de mundo em nenhum momento impediu que trocássemos impressões sobre elas, com comentários que podiam até ser pesados mas nunca desrespeitosos. Pessoas assim são raras.
Outro grupo nosso eram
As Meninas (foto acima), como costumávamos chamá-las: Dani, Rê e Carol, formavam o
núcleo duro com eventuais adesões das amigas de cada uma delas. Os encontros podiam não versar sempre sobre vinho, mas o tema não era raro; essa turma gostava mais de um barzinho com música ao vivo, de dançar (elas!), ou mesmo de um jantar fechado aí sim regado a vinho, mas sem o compromisso da apreciação técnica, o que fazíamos Akira e eu em breves conversas enquanto o encontro se desenrolava. Uma conexão que gostei de cometer (sic) no blog foi
Machado de Assis e o Apê da Carol, em 2014 e por ocasião da 'inauguração' do apartamento dela. Com o paladar um pouco sofisticado pelo meu
primeiro borgonha (também oferecido pelo Akira), estranhei a aspereza de um vinho - o Finis Terrae - que até então tinha na memória como modelo de maciez. Foi um daqueles momentos em que percebe-se, com a sutileza de quem recebe um piano de cauda na cabeça, como nosso paladar muda com o tempo, muitas vezes sem que nos demos a menor conta.
O tempo e o acaso foram generosos conosco. A dado momento conheci casal proprietário de franquia de café lá no centro. Tudo errado: ele era na verdade professor titular aposentado da USP; ela, médica. A franquia, uma diversão. A Sra. N, Neusa, debutou no blog na
tão fantasiosa quanto nervosa missiva a este mentiroso de plantão. Algum tempo depois do encontro fortuito comentava para o Akira sobre a nova amizade e ouvia dele que ambos - Wilson e ele - ministravam aulas na mesma faculdade em Araraquara. Foi assim que, em julho de 2019, juntando o Jacimon, amigo com idas e vindas de e para São Carlos por motivos profissionais, e o Romeu, eterno coringa de várias degustações em confrarias diversas, nos reunimos para prestar homenagem aos 50 anos da primeira alunissagem. Foi outra postagem que curti muito ter cometido (rs), principalmente a parte do macaco fazendo um sinal de
não com o indicador enquanto recusava-se a entrar na Sputnik 2...
A confraria iniciada com o casal expandiu-se um pouco com o precoce falecimento do Wilson. Vieram a Margarida e a Elvira, amigas da Neusa, e o Ghidelli, amigo nosso, retornando ao país após certo tempo trabalhando no exterior, junto da Márcia, sua esposa. O Ghidelli chegou à confraria com muita experiência e conhecimento, principalmente sobre vinhos europeus, e muitas vezes descobria a procedência de vinhos de maneira certeira e elegante. Se treinar mais uns 200 anos (🤣), fica como o Akira. E deixemos claro que isso não é nenhum desabono, muito pelo contrário. Este Enochato que vos engana jamais poderá competir com o Ghidelli, quanto mais aspirar chegar aos
insights do Akira. Na loteria da genética, a memória olfativa é - como em toda loteria - uma dádiva para poucos...
Eis que
em algum momento de '22 apresentei o Akira às Moiras, confraria formada por pequeno grupo que se encontrou nos eventos
Vinho e Turismo realizado pela Vinho e Ponto de S. Carlos e sucedeu ao grupo Camarão com Vinho - por sua vez uma dissidência (rs) da Noivas de Baco. Já mencionara o Akira a elas, que por por seu lado também haviam lido sobre ele nas postagens do blog; estavam então mais do que curiosas para conhecê-lo. Na foto ao lado, infelizmente, faltou a Luciana; a postagem está
aqui e lá tem foto dela também... É claro que a empatia entre as Moiras e o Akira foi instantânea; seu jeito simples e fala tranquila conquistou-as de imediato e quando perguntei-lhes se gostariam de vê-lo em outros encontros, a resposta foi que gostariam de vê-lo
em todos os encontros...
Cometendo diversos esquecimentos e pecando por abreviar esta narrativa, omitindo a recepção digna de realeza que recebemos do Nagib e da Magide quando visitamos esse meu outro grande amigo em convalescência lá por 2010, ou em encontros com o Paulo Marcos e o Whisner, ou com a Beth e a Isabela, ou o Alexander e Raquel, dentre muitos, muitos outros, vou convergindo para a reflexão de que o Akira não seguia qualquer religião. Isso não impede que 99% de seus amigos - eu, inclusive - acreditemos que o Além, qual seja sua manifestação, ganhou um ilustre morador. Vá lá, meu amigo. Encontre-se com seus antepassados, em especial aquele seu parente samurai, dono da espada que saiu vitoriosa da última contenda da qual participou, carregando em seu fio o sangue do oponente. Quem sabe a mana Simone não me manda uma foto da espada ancestral que permanece em sua família, de cujas tradições você carregou e honrou durante seu tempo por estas paragens. Prazer em compartilhar tantas experiências e momentos divertidos consigo!