Tuesday, October 24, 2023

A degustação da Mercearia 3M

Introito

   Aristóteles escreveu a Poética há 2.300 anos; seu pensamento continua atual e influenciou significativamente a análise literária, mostrando como podemos identificar qualidades ou defeitos em textos poéticos ou teatrais. Uma abordagem mais significativa do tema aconteceu apenas no início do século XX, com os formalistas russos. Hoje a crítica está estabelecida e é reconhecida como importante nas artes de maneira geral. 
 
Uma foto não precisa retratar um animalzinho fofo para ser artística. O fotógrafo deve ter sensibilidade para encontrar o ângulo, a luminosidade e o instante oportunos para seu clique perfeito, não importa qual seja o alvo de sua lente. E nem o observador está obrigado a apreciar o que é clicado, mas ele deve conhecer os conceitos de fotografia para poder avaliar se está mirando uma obra de valor ou um simples retrato. Da mesma maneira, um filme ou uma poesia não necessitam abordar temas belos para serem considerados arte; pode-se expressar até o macabro com toques de sofisticação e produzir-se uma obra-prima. Pensando assim, Robert Parker - até onde sei o primeiro a debruçar-se com olhar crítico sobre nossa bebida preferida - lançou as bases da avaliação para os vinhos em um momento onde as  análises praticamente só vinham de pessoas ligadas diretamente ao produto - um claro conflito de interesses. A proposta é relativamente simples, levando em conta a base na cor e aparência do vinho, aroma e bouquet, sabor e final, e nível geral de qualidade ou potencial. A escala começa com 50 pontos 'dados', e o avaliador pontua os aspectos do vinho segundo a regra onde cor e aparência recebem o máximo de 5 pontos; aroma e buquê, até 15 pontos (cuja análise se limita à intensidade e alcance da bebida); o sabor recebe até 20 pontos (estendendo-se ao equilíbrio, profundidade e persistência) e a qualidade global e potencial de evolução vale até 10 pontos. Essa regra está aqui, embora aqui esteja melhor comentada. Portanto falamos de um pouco de atenção, boa memória olfativa e gustativa, critério e perseverança para poder começar a avaliar vinhos - e é onde o chão afunda... pois... qual é o critério a ser usado? Como um bebedor iniciante, conhecedor, vamos escolher, apenas de vinhos chilenos, ou mesmo nacionais, pode considerar-se apto a avaliar vinhos? Ele claramente não o é. Da mesma maneira, um bebedor de vinhos do mundo todo, mas na faixa de 5,00 a 25,00 'moedas' também não é. Então o avaliador precisa beber dos grandes vinhos do mundo? Bem, pretende que seja diferente? Esses avaliadores terão tudo para serem os melhores, se deixarem de lado os conflitos de interesses. Quem já bebeu somente alguns grandes vinhos (quantos?...) pode ser um bom avaliador também. Quem bebeu muitos vinhos de certa qualidade pode avaliar bem vinhos daquele patamar para baixo - e pode até funcionar se ele souber calibrar sua avaliação a partir de outras notas conhecidas por ele. Complexo? Seguramente. Mas funciona, e é fácil comprovar: este Enochato - sem qualquer vaidade - está longe de ser qualquer sumidade mas oferece em várias confrarias das quais participa vinhos melhores do que a média dos demais membros, na faixa de preço em questão. Tá, aqui tem também o ponto de saber fugir das tubaronas, mas o assunto é outro. Como isso acontece? Simples: o Enochato aprendeu a calibração proposta acima com gente que sabia muito mais do que ele, notadamente Don Flavitxo e Akira. Nessa confraria, conversávamos de tudo: futebol, política, samba, suor, ouriço - principalmente ouriço - mas tínhamos nossos momentos de avaliar e estudar os vinhos. Vai por mim, funciona; basta prestar atenção, ponderar e ter vontade de aprender.
   Volto ao assunto na próxima postagem. Por enquanto, sugiro uma leitura sobre o Parker aqui, e outra sobre uma abordagem pragmática da pontuação de vinhos, aqui.

Impressões da Segunda Degustação Mercearia 3M-Damha Golf

 No sábado, dia 7, a Mercearia 3M realizou no restaurante do clube de Golfe no residencial Damha a segunda edição da parceria. O lugar é espaçoso e acomodou bem os 400 participantes ávidos por degustar parte dos 200 rótulos disponíveis. Meu propósito foi o de sempre, nas degustações regionais: experimentar sul-americanos em geral e nacionais em particular, para constatar como andam. Afinal, é necessário acompanhar o mercado para poder falar mal dele com alguma propriedade (risos!). Sejamos francos: das degustações passadas, aqui e ali, não sinto-me confortável para pagar R$ 70,00 em um tinto nacional. Por R$ 80,00, bem comprado - na 'promo' - pego um 5 Forais. Não tem para nacionais, podem perfilá-los prontos para o abate. Bom, dos nacionais de até R$ 150,00 nenhum ganha, por que vou arriscar pagar, digamos, R$ 250,00 numa tranqueira em potencial? OK, aos vinhos...

Amitié é um produtor tão novo quanto objetivo: procurei seu sítio de internet, mas só encontrei mesmo a loja eletrônica da empresa... na conversa com o sr. Ednar, fiquei sabendo da sede - Vale dos Vinhedos - e da fundação da vinícola em 2018. Seus espumantes têm sim alguma graça, são vivos, acidez discreta, leves, ótimos para beber na piscina: esquentou, você deixa cair dentro dela e tudo se resolve. Eles quase conseguem competir com um espumante italiano como o Bacio Della Luna, já degustado aqui inúmeras vezes. Falta apenas competir no preço: seu espumante mais barato custa R$ 65,00, muito caro em comparação com o italiano a módicos 5 moedas em seu país de origem. Fazendo o câmbio, dá R$ 25,00. Reclame-se dos impostos aqui. São os mesmos que incidem sobre o Bacio, e eu o comprava na 'promo' a R$ 45,00. Não reclamem, produtores nacionais... O Amitié Colheita de Verão Cabernet Franc tem uma picância muito leve e um ultra-especialista poderia conectá-lo a uma Cabernet. Sendo apenas um super-especialista, passei longe da sugestão. Tem sim alguma fruta no nariz, mas a boca é ligeira, baixa acidez - discreta, mas tem. É um ponto favorável sim, mas seu preço sugerido, R$ 100,00, não convence. O Pinot Noir saiu-se algo melhor, pois mostrou nariz mais rico e a boca surpreendeu, em comparação com o CF. Por R$ 85,00, é melhor compra. Até poderia pegar uma garrafa para brincar com amigos, mas pergunto: para que repetir, depois? Dois brancos, e foi assim: ou anotei errado os preços, ou o sr. Ednar se confundiu. O Viognier, anoitei como R$ 160,00, mas no sítio da empresa consta R$ 100,00. Tem buquê melhor do que a boca, onde a acidez é discreta e o final é ligeiro. Pelo preço anotado, e comparando com o sítio, por R$ 160,00 vem o Chardonnay, que é o 'Oak Barrel'. Mas aí pergunto: para que carvalho em um vinho com acidez praticamente zero? Tem lá um cítrico muito básico, mas na boca nem a madeira faz volume. R$ 160,00? Fala sério...

Na Casa Perini, famosa pelo aclamado quinto melhor espumante do mundo - experimentei, quando ganhou o galardão; achei que deveria ser o quinto pior do mundo, dentre os que já provei na vida - conheci a coleção Fração Única nas versões Cabernet Franc 2021, Tannat 2021 e Merlot 2020.  Sobre o Merlot, a página do sítio do produtor diz que... Este Merlot representa estrutura equilibrada entre taninos e acidez. A passagem por barrica de carvalho oferece a este vinho notas complexas. Lembra do começo da conversa? Quando citei a exasperação do Parker ao constatar que as críticas de vinho estavam ligadas a profundos conflitos de interesses da parte dos produtores? Por aqui, nada mudou. O equilíbrio aqui é entre taninos muito discretos e acidez pouco notável - o tanino ganha pela simples existência! São vinhos ligeiros, sem muito diferencial. Não são ruins nem mal feitos, apenas falta-lhes complexidade - complexidade de verdade. Complexidade é isso, ou isso. O resto é conversa mole. E o detalhe: ambos os vinhos referenciados valem - porque valem! - por volta de 100 moedas nas Európias. Aqui, Fração Única custa... custa... 100 moedas! E olha, com desconto!


   Tentei argumentar com o sommelier da empresa: o próximo passo seria tentar derrubar o preço. Ele reclamou dos impostos - mas todos os vinhos pagam... - e do preço da garrafa. Segundo ele, há apenas uma empresa a fornecer garrafas para todo o mercado. E, se entendi bem, o valor da garrafa seria algo como R$ 9,00 a unidade. Perguntei por qual motivo não produziam o vinho em caixinha. Não há demérito. Eu compraria Fração Única por R$ 20,00, para mostrar para as pessoas. Em casa, fui procurar. R$ 9,00, né?

  Vinte garrafas, sem rolha, R$ 60,00. Dá R$ 3,00 por garrafa. 🙄 já sei... a rolha custa R$ 6,00.

  Tentemos novamente. Doze garrafas, com rolha, R$ 25,00. Dá R$ 2,09 por unidade. 🙄 já sei... o rótulo custa R$ 6,91.

   Se servir de consolação, pelo menos a elite dos vinhos nacionais parece ter passado aquela fase onde as uvas eram esmagadas com prensa hidráulica a ponto de arrebentar as sementes e passar para o vinho seus taninos mais amargos. Não, isso não acontece - não com os vinhos de elite. Esse cuidado óbvio deve ser a explicação real para os preços altos do produto - além, claro, do Roberto Carlos ser chamado para cantar para o parreiral nas podas de inverno.

   Com o grande número de rótulos, não é de estranhar a repetição de alguns já presentes em eventos passados. Apenas evitei-os, ou experimentei um pouco dos melhores exemplares, para dar uma acompanhada. Dentre chilenos e argentinos, principalmente, nada de surpreendente. Continuo falando mal com propriedade. O uruguaio Garzán estava representado por um rótulo básico, creio. Assim como a qualidade: básica. Não lembro o preço, mas refleti na hora preferir os portugueses do Crasto e Esporão, parceiros da Mercearia em praticamente todos os eventos de maior envergadura da loja, não comparecendo apenas em degustações específicas. Não há muito o que falar deles, a qualidade é sempre boa. O preço parece-me andar um pouco fora, mas não fiz as contas direito. Já bebi muito deles em outros tempos, até mantenho alguma derradeira garrafa e sinto que já deu. Não me recuso a beber deles caso sejam servidos, apenas tento outros rótulos. É a tal da escolha do consumidor.

Mas nem tudo foi sofrimento e desgraça pelos stands do evento. Encontrei os alentejanos Rapariga da Quinta Colheita Seleccionada 2021 e seu irmão maior, o Rapariga da Quinta Reserva 2020. O primeiro, corte Aragonez, Trincadeira e Cabernet Sauvignon, mostrou fruta básica, boca ligeira, acidez baixa a média, meio ligeirinho mas bastante bom para seus cerca de R$ 90,00, principalmente se comparado aos nacionais. Dá uma surra em tudo o que experimentei e nos comentados em particular. O Reserva é um corte lusitano mais típico, Alicante Bouschet, Aragonez e Touriga Nacional, madeira presente, fruta marcada, acidez tendendo a média, melhor permanência. Claro, por R$ 170,00, precisa entregar mais. Seus preços aqui não estão tão fora, e o Reserva compete bem, por exemplo, com o Herdade dos Grous, pelo mesmo preço 'cheio' aqui - prefiro o Herdade, e este já comprei a R$ 110,00, recentemente; aí fica difícil para os Rapariga... Lá em Portugal seus preços não discrepam tanto... bendita concorrência... 

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