Tuesday, October 31, 2023

Vinho sem nota ou nota-sem?

Introito

   Na postagem passada abordei um pouco do sistema de avaliação de vinhos. Resumindo antes de retomar: é possível valer-nos de uma maneira sistemática, honesta e independente para estimar a qualidade de vinhos. Se em algum momento o juízo dos avaliadores deixou de guiar-se pela métrica inicial, isso é apenas e tão somente a comprovação de como o dedo podre da humanidade pode estragar o que toca - estragamos o Paraíso, confere? Não vimos ao longo de uma década certo cinéfilo dourar a pílula para filmes de quinta categoria em canais menores, após deixar a emissora de maior audiência do país? Sua linguagem era tão refinada quanto a de sommerdiers (sic! rs!) conhecidos no meio como defensores dos frascos e comprimidos, bem como das importadoras tubaronas; palhacinhos da justiça, como digo. Voltando: o bebedor precisa estar com a boca e o nariz armados para julgar por si e concordar ou discordar das avaliações. Deve beber bons vinhos, de vez em quando (risos) e avaliar vinhos mais simples, segundo as regras e tendo por base o que conhece e concorda, como aqueles que mais aprecia, ou mais o marcaram. Lembre-se: se atribuímos notas a filmes e livros - na escola ninguém estranha o professor classificar redações dos alunos - qual o problema em aquilatar um vinho?
   De acordo com Parker, os vinhos são classificados, pela pontuação já comentada, assim:
   50 - 59 pontos: inaceitável.
   60 - 69 pontos: abaixo da média com deficiências visíveis, como acidez e/ou tanino excessivos, ausência de sabor ou possivelmente aromas ou sabores desbalanceados.
   70 - 79 pontos: médio com pouca distinção, exceto que é bem feito. Em essência, um vinho simples.
   80 - 89 pontos: ligeiramente acima da média a muito bom, apresentando vários graus de delicadeza e sabor, bem como caráter, sem falhas perceptíveis.
   90 - 95 pontos: vinho de excepcional complexidade e carácter, rico em buquês e sabores.
   96 - 100 pontos: extraordinário, de carácter profundo e complexo, apresentando todos os atributos esperados de um vinho clássico.

   Tente fazer suas comparações - inicialmente sem falar em notas. Tente lembrar-se das características de vinhos similares ao degustar sua próxima garrafa. Vá recordando-se das experiências vividas - como nos recordamos dos grandes momentos das férias, das boas poesias, dos nossos amores. Quando já bebia de vez em quando um Crasto Vinhas Velhas, um Esporão Reserva, depois de ter bebido alguns italianos melhores, discutido e treinado com Akira e Don Flavitxo, comecei a atrever-me no julgamento de vinhos mais simples, e um depoimento de 2012 está aqui. Você também consegue, basta começar. O benefício direto e imediato será desconfiar daqueles sábios de óculos dizendo que devemos beber Vinhos de Procedência (assim mesmo, com V e P, perceptíveis pela solenidade na pronúncia das palavras) que os espertalhões sommerdiers e defensores das importadoras tubaronas tentarão empurrar-lhe em troca de seus suados cruzeiros. 

   É bem possível que nos primeiros momentos os avaliadores - em sua maioria - fossem absolutamente honestos na proposta inicial: um posicionamento pró-consumidor, não pró-indústria. Mas é inegável que as avaliações geraram uma corrida pelos vinhos melhor avaliados e o aumento de preço desses vinhos aconteceu tão rápido quanto espalhou-se a notícia de suas notas. Logicamente esse efeito - talvez inesperado - despertou olhares de cobiça tanto do lado de produtores quanto de avaliadores de vida fácil. O resultado, hoje, é vermos avaliadores portando-se como autênticas metralhadoras de notas 100, disparando para todos os lados suas benevolências a ponto de muitas e muitas notas não guardarem qualquer similaridade com o cânone da crítica. Segundo os comentários mundo afora, o primeiro a entregar-se nos braços de Belial foi um certo James Suckling, a quem refiro-me normalmente como James Sucks. Outros - Parker inclusive - não demoraram a juntar-se a essa procissão macabra. Por outro lado, na internet, there were some who resisted 1:15 (risos!), as forças do bem juntaram-se aqui e ali. O mais célebre espaço é o Cellar Tracker, onde os amadores podem escrever resenhas sobre os vinhos, atribuir notas, criticar as avaliações profissionais e, sobretudo, passar muitas dicas sobre o serviço do vinho, como sua necessária aeração, em muitos casos. As notas de lá divergem em muito daquelas dos profissionais - invariavelmente, para baixo. Em minha opinião, são quase sempre melhor abalizadas. Essas ideias não esgotam o assunto, mas espero ajudar o leitor a ter uma abordagem mais realista acerca de nota e pontuação de vinhos.

Início

P
ulando muitos vinhos degustados ultimamente, ofereço o relatório sobre um nota-sem (sic! rs!) degustado neste final de semana. O Edu Turismo levou a turma (eu não...) para um passeio na Argentina. Visitariam a Catena e a Enemigo, dentre outras, então sugeri para a Liu trazer um Gran Enemigo Gualtallary Cabernet Franc para fazermos uma brincadeira. O leitor atento lembra-se do quanto fiquei desconcertado com a experiência advinda desse mesmo vinho por mãos do Renê e queria tirar a prova - recomendo a releitura da postagem acima até antes de continuar desta, inclusive dos extensos comentários na discussão. Renê trouxera seu exemplar da Argentina - não da bodega -, e sentamos-lhe a pua. Um leitor suspeitou tratar-se de falsificação, e a estória foi longe. Nosso encontro - em U, da esquerda para a direita, Débora, Mário, Edu, Liu e o Enochato - aconteceu no Restaurante Barone e reuniu confrades do grupo Vinho e Turismo, patrocinado pelo Shot Café. Espero ver outras pessoas animarem-se e saírem em grupos para encontros similares. Hulk smash... vinho une... Enochato desune... Eduardo usa cola e reúne tudo novamente... assim vamos.

Vinho nota-sem

Tivemos uma cava de entrada, um tintinho nojento de abertura - não comentarei - e os três atores principais. Artimanhosamente (sic! rs!), fiz para mim a seguinte proposta: levar um tintinho para pegar o Gran Enemigo Gualtallary por baixo, no sentido de ter qualidade mínima para arrancar-lhe um empate honroso em degustação às cegas, e depois chegar com um tintão para passar-lhe um pneu. Quem joga tênis sabe: pneu é vencer o set por 6 x 0. Atingido o intento, teria como argumentar em bases mais sólidas além da simples apreciação de um único vinho. Inicialmente apreciamos o Gran Enemigo, depois meu tinto mais simples, e então o mais complexo. Débora, Liu e Mário gostaram mais do meu tinto simples do que do Gran Enemigo. Meu segundo vinho não atingiu o pretendido 6 x 0. Na opinião geral ficou em meros 6 x 2. Para o Edu, Gran Enemigo fez 6 x 4 no meu melhor vinho. Sempre digo: o Edu é um ótimo agente de viagens... 🤣😅

El Gran Enemigo 2019 mostrou bastante fruta e alguma baunilha, mas pouco além. Algum traço de chocolate/fumo estava sufocado, eclipsado pela fruta. A boca também, muita fruta, madeira discreta, acidez baixa, rápido e rasteiro. Escrevo no segundo dia, e degustando a última taça. Não melhorou muito: tem final um pouco melhor um pouco mais de persistência, e é isso. Seu ataque - a entrada na boca - como disse o Eduardo, é sim bem macio, aveludado, e talvez seja sua melhor qualidade. Equilibrado, sem dúvida, sem arestas no sentido de nada exaltado, mas sem grandes surpresas. Era sim o mais aveludado dos três - não sei de onde vem essa característica, mas está bem trabalhada. Apenas é muito pouco para um vinho pretender chegar a 100 pontos. De onde tiraram isso? Pode ter aí uma legião de defensores ávidos por poderem dizer terem bebido um vinho 100 pontos de dois avaliadores distintos. Bem, não brigarei com essa turma de dissonantes cognitivos. Apenas ficarei com os 97 pontos de um Emílio Moro Malleolus de Sanchomartin 2004 (Flavitxo postou), com os 95 pontos de um Torbreck Descendant 2005, ou mesmo do Oracle 2005 (mesma degustação, também pelo Flavitxo), com o La Janasse Chaupin 2009 qualquer que seja sua pontuação (98 - risos), com o Domaine du Pégau Châteauneuf-du-Pape Cuvée Réservée 2001, ou qualquer outro de dezenas de vinhos melhores do que El Gran Enemigo degustados ao longo da vida. E olhem, estou claramente pegando muito por cima: tais vinhos estão anos-luz à frente de Gran Enemigo...

   O segundo vinho degustado foi o Quinta do Noval Syrah 2017, duriense do conceituado produtor Quinta do Noval. Nariz rico, com frutas, especiaria e mais notas; boca com acidez algo melhor, concentrado à base de bons taninos e melhor persistência. Débora, Liu e Mário apreciaram-no mais. Depois fizemos uma prova repetindo Gran Enemigo em uma taça e na outra ofereci um Quinta da Romaneira Syrah Apontador 2016. Claramente um degrau acima do Noval, nariz mais complexo à frutas, chocolate/café, especiaria e mais. Boca abundante de notas entre frutas, chocolate ao leite, com o dulçor típico dos portugueses - Noval também tem, menos intenso -, ótimos taninos, final longo, permanece na língua quando o engolimos e salivamos depois. Para a maioria, se não foi um 6 x 0, ficou num ótimo 6 x 2: sobrou. Apenas o Eduardo considerou Gran Enemigo melhor.

   Então vem a pergunta: como um vinho 90 pontos, e outro 91 pontos, tratam um double cem (sic) na ponta da bota, sem respeitá-lo nem dar-lhe moral? Repetindo: na melhor das hipóteses, El Gran Enemigo precisou suar muito para suplantar um ótimo Novalzinho de 30 Euros em seu país de origem - Enemigo custa USD 40,00, na bodega. Ele tomou vareio forte de outro de 45 Euros...

   Enemigo nada acrescentou ao exemplar anterior degustado com o Renê, a menos da certeza: aquele vinho dele não era falsificado; El Gran Enemigo é mesmo um vinho fraco em comparação com europeus de valor similar e está muito aquém desses cem pontos conferidos por avaliadores que aparentemente encontraram seus narizes no lixo. 
  

Sherlockianas

   Voltando ao ponto: como um vinho assim consegue pontuação tão expressiva? Para tentar salvar a honra dos avaliadores - veja lá o aparentemente... - convido o leitor a ativarmos nossos sentidos Sherlockianos e especularmos sem medo. Claro, desentortando de um lado, entortamos do outro, na mesma proporção. As possibilidades para explicar o sucedido são:
    * Os exemplares enviados para avaliação não continham Gran Enemigo, mas outro vinho - continham um Vinho, com 'V". Pode-se argumentar: os avaliadores compram os vinhos no mercado formal. Antigamente sim; não sei se continua dessa maneira. Mas é certo: em concursos e degustações mundo afora, o produtor leva o vinho.
   * Aventou-se nos comentários da postagem passada o fato dos vinhos da Catena sofrerem falsificações. Bem, descobrimos a fonte dela. Os consumidores - mesmo visitando a bodega - estão levando gato por lebre; El Gran Enemigo pode ser muito bom, mas não é o que estamos bebendo.
   * Este Enochato (e todos seus confrades) não souberam avaliar o que tinham em mãos. Admito, admirei-me com certa simplicidade do Château Montrose 2003 e do Quilceda Creek 2004 quando fiz minha comparação particular do Julgamento de Paris. Está aqui. Mesmo Don Flavitxo ou Akira deixaram passar tratar-se de cortes bordaleses - sequer identificaram a Cabernet Sauvignon, que nesse nível de vinho é de fato muito diferente das expressões às quais estamos acostumados. Mas péra lá (sic), tinham ótima acidez e eram marcantes em boca. Você engole vinhos como esses e não os esquece tão fácil...eles permanecem consigo por um bom tempo, e olha, é um bom tempo mesmo... Não há como: um grande vinho o bebedor conhece por um lado ou por outro.  Portanto a hipótese precisa ser descartada.

   Bem, é isso. Arrepiem-se detratores, mas quem é independente pode dar sua opinião sem medo. Dado o longo histórico de alta pontuação dos Gran Enemigo, parece-me clara a desconfiança sobre os avaliadores ou sobre o produtor - e acho difícil haver apenas um culpado na estória. Reputo a contribuição do sistema de avaliação por notas. O problema é o que está sendo feito dele.

Preço Apontador 'lá'.





Preço Quinta do Noval lá.


2 comments:

  1. O mais espetacular da experiência de apreciar os vinhos às cegas, foi a satisfação de escolher o melhor da noite, SEM Notas, SEM rótulos e SEM intenção! Apenas o melhor vinho da noite COM a certeza que o vinho escolhido será Apreciado Novamente COM ou SEM companhia! Quem sabe ?!

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    1. Olá, obrigado pela leitura.
      É uma boa perspectiva. E, seguramente, o melhor da noite será apreciado novamente... esse vale a pena...
      Até a próxima.

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