Sunday, November 6, 2016

Quando potência e elegância andam de mãos dadas

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Introito

   A senhora N. encontrou meu endereço e escreveu-me, entre triste e aflita. Participante de uma confraria de amigos que se conheceram na graduação e seguiram caminhos diferentes, para reencontrar-se anos depois sob a égide de Baco, tinham por brincadeira reunir-se uma vez por mês para degustar às cegas os vinhos que cada um levava ao encontro, atribuindo-lhes notas e elegendo o melhor noite. Ainda, quem identificava o próprio vinho - eram servidos às cegas, lembre-se - ganhava alguns pontos extras na classificação geral.
   Acontecia que a senhora N. ocupava o penúltimo lugar dentre os sete membros votantes na brincadeira mensal. Ainda, ela era, dentre os casais, a única mulher que votava nessas reuniões. Assim, sentia um peso suplementar sobre os ombros, pois promovia uma defesa solitária da honra feminina.
   Ela sabia que sempre levava bons vinhos e, em diversas ocasiões, ficou se perguntando por que suas garrafas italianas e francesas tinham ficado atrás de chilenos, principalmente, e argentinos.

 - Help me, Enochato sem Galochas, you're my only hope - assim ela terminava sua primeira missiva.

   Tirei os óculos, agarrei uma das pernas com os dentes e deixei-o fazendo um movimento pendular à frente dos olhos enquanto caminhava pela sala pensativo. Senti um leve peso pelas costas, como se algo se estendesse quase até os calcanhares, e fiz menção de ajeitar os ombros. Procurei mas não encontrei nada. Ainda olhei para a cintura e não, não estava com um cuecão vermelho por cima da calça. De qualquer maneira, era um trabalho para o Super-Enochato...

   Refleti melhor: uns bocas-tortas amantes de chilenos (risos!) quase certamente confundiam madeira com potência. Como eu poderia ajudar a pobre mulher e, de quebra, dar uma lição inesquecível naquelas almas desvirtuadas do bom caminho? Na verdade não precisei pensar muito; já tivera uma experiência deveras didática*, quando um IGTzinho com jeito de morto transformou Brunellões de peso em menininhas correndo amedrontadas pelo Lobo Mau. Escrevi de volta sucinto:
   - A senhora pode escolher um Galardi Terra Di Lavoro, atualmente disponível na safra 2010.
   Junto, seguiam alguns links para lojas onde o produto estava disponível. E não aconteceu que a senhora N., além de comprar duas garrafas, chamou-me para degustar uma delas?!

Galardi Terra Di Lavoro 2010

Roccamonfina, onde este IGT é produzido, é uma das várias regiões vinícolas da Campânia, localizada na canela da Bota. Os tintos são predominantemente de Aglianico, Piedirosso e Sciascinoso (ou Olivella), com ocasional presença de Primitivo (veja aqui). O nome Roccamonfina é referência a um vulcão extinto, o que confere ao solo características muito minerais. Isso, é claro, reflete diretamente nos vinhos.
A vinícola Galiardi foi fundada em 1991, e em 1993 lançou seu primeiro vinho (veja aqui). Pedindo perdão pelo clichê, o resto é história.
Terra Di Lavoro, 80% Aglianico e 20% Piedirosso, com teor alcoólico de 14%, passa por envelhecimento em carvalho durante 12 meses, e foi servido com uma hora e pouco de aeração. Já estava começando a ficar bom para ser degustado, e só cresceu ao longo das quatro horas que passamos à mesa. Infelizmente o nariz deste enochato encontra-se em situação calamitosa, entrando em saturação após algumas poucas cafungadas.
   Depoimentos dos diversos presentes atestaram sua evolução, alterando as notas entre frutas (bem presentes no início, detectáveis até por este que escreve) para o surgimento de chocolate ou café (não sou o único com essa dificuldade!) e fumo.

O Bressia Conjuro



Produto da Bodega Bressia,  estabelecida em Mendoza, Bressia Conjuro é um corte Malbec, Cabernet Sauvignon e Merlot de vinhas plantadas no Vale do Tupungato, a 1100 metros de altitude. Envelhece 18 meses em carvalho e outros 24 meses em garrafa.
Infelizmente, afetado pelo problema de nariz, não ocupei-me de registrar o rótulo, nem guardei a safra. Bressia Conjuro tem bom nariz - agradou aos participantes mais do que a mim, mas meu julgamento estava claramente afetado -, bom ataque, mas seu grande pecado foi encontrar pela frente um Terra di Lavoro. A falta de acidez ficou evidente na boca: transformou a garganta em escorregador.
   Eu não tenho certeza do que vou dizer agora: talvez se degustado junto de outros sul-americanos, a falta de acidez passe meio batida. Na comparação, fica muito evidente. Talvez apenas falte mais experiência a este enochato para cravar que falta de acidez seja notória, mas como sou um pobre iniciante nesse assunto, o leitor mais qualificado fica no direito de julgar-me muito encima do muro.
   Mas há um ponto onde não fico em cima do muro: Bressia Conjuro custa entre R$ 405,00 e R$ 730,00(!), contra R$ 540,00 do Terrra di Lavoro. Em se tratando de um sul-americano, é um bom vinho. Mas não encara o confronto com um do Velho Mundo. Se custasse R$ 400,00, o meu veredito seria claro: quem chega em R$ 400,00, coloca mais R$ 140,00 e vive feliz. Se Terra de Livoro vale R$ 540,00, Bressia talvez valha a metade.

A competição

D. Neusa voltou da competição com o resultado oficial do mais recente embate. Seu vinho tinha pego em terceiro lugar. Perdeu para um Cobos corte uNico 2008 (preço no Brasil: R$ 1.500-R$ 2.000) e para um Châteauneuf du Pape Bosquet des Papes Chante le Merle 2012 (preço no Brasil: R$ 500-R$ 600). Entubou (risos) um Ridge Monte Bello 2009 (cerca de R$ 1.000,00), um Chateau Smith Haut Lafite, Pessac-Léognan 2010 (R$ 900,00) e um Brunello di Montalcino 2010 (produtor não especificado). O detalhe é que todos eram vinhos 97+. Tinha subido alguma posição no ranking, e, se não estava 100% feliz, certamente ficou mais animada. Outro desentiressado trabalho deste Enochato em prol da divulgação e defesa dos bons vinhos e bons costumes (risos!)


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Resenha

Vinho & Guerra. Os Franceses, os Nazistas e a Batalha Pelo Maior Tesouro da França
   Já havia lido as primeiras páginas do capítulo 1 há muito tempo, quando estava hospedado na casa de um primo, e dividia com ele a leitura do presente de Natal que ele ganhara da esposa. Desta vez consegui um exemplar emprestado e fui até o final.
   Vinho e Guerra tem uma narrativa dinâmica, entrelaçando o dia-a-dia de vários produtores tradicionais de diferentes regiões da França com os esforços do povo francês na árdua resistência face à ocupação alemã. Apresenta também a figura dos weinführers, agentes especializados a serviço do Reich cuja principal missão era garantir que os melhores vinhos francesas molhassem as gargantas certas dentro da cadeia de comando nazista.
   O livro contém muitas passagens belas e emocionantes. Uma das que mais gostei foi acerca da confraternização que Gaston Huet conseguiu promover no campo de concentração para oficiais em que esteve preso durante quase toda a guerra:
Huet se retirou para um canto da sala para saborear seu copinho de mostarda de vinho. Deu um suspiro de satisfação. Era um vinho branco seco do vale do Loire; não era do seu vinhedo, mas ainda assim trazia um gosto de casa. Olhou fundo sua cor esverdeado-dourada, depois se deteve para aspirar seu aroma, seu buquê floral com sugestões de limão, pêra, maçã e mel.
Quando levou o copo aos lábios, o vinicultor Huet falou mais alto: "Hum, um pouquinho acidífero", pensou. "Verde no palato médio e o final é fraco. Duvido que as uvas de Chenin Blanc tenham ficado bem maduras".
Essa análise, contudo, durou apenas alguns breves segundos, pois de repente emergiu o Huet amante do vinho, e os sabores e aromas da bebida o envolveram.
Para quem conhece um pouco acerca vinhos do Vale do Loire, sabe o que significa o nome Domaine Huet na produção vinícola em Vouvray. E, sobretudo, se já experimentou um Moelleux de sua lavra, o trecho acima traz um sentimento particular. Está certo que o vinho degustado por Huet na ocasição era um seco, mas seu Moelleux marcou-me profundamente. Saiba mais sobre a região aqui, e aqui. Siga também o vínculo Vouvray Moelleux na última página para saber melhor o que estou tentando dizer.

Entre o Terra di Lavoro e Vinho e Guera, não tenha dúvida: se puder, fique com os dois!

Vinho & Guerra
Don e Petie Kladstrup
Jorge Zahar Editora
Preço: aproximadamente R$ 45,00


*O André referido na postagem não era eu, que participei do evento na condição de simples comensal.