Tuesday, February 28, 2023

Vinhos de sangue

Introito

   Diamantes de sangue é como chamamos as pedras preciosas obtidas em uma zona de guerra e extraídos por mão de obra em condições análogas à escravidão. Não temos muitos diamantes por aqui, mas nosso vinho é o terceiro melhor do mundo, com o Champagne em segundo (mentem, claro), e ainda assim precisamos escravizar trabalhadores envolvidos com a colheita das uvas. Consta que em primeiro momento Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton negaram participação e conhecimento da situação a que estavam submetidos 203 de seus trabalhadores terceirizados - as empresas serão ouvidas pelo Ministério Público do Trabalho amanhã, dia primeiro. Só depois vieram as declarações do não vi, não sei, não comungo e similares.

De ontem para hoje

   Recebi alguns comentários de leitores via uátizáppi. Do Jairo, da Vinho e Ponto, a declaração abaixo:
Quando eu era o gestor da área florestal da Faber-Castell, todo trabalho de campo era contratado com terceiros. Porém, tínhamos auditorias mensais em documentação (carteiras de trabalho, INSS, FGTS ....), e auditorias de campo (grifos meus) para ver as condições de trabalho (horários, transporte, qualidade de alimentação, qualidade da água, primeiros socorros, etc.)
   Pronto. Está dito e exemplificado como tem que ser. Tivessem um mínimo de apego a seus ideais - transcritos na postagem passada - as vinícolas envolvidas não passariam pelo atual carão. Para este articulista, muita coisa ainda não faz sentido. As perguntas que não se calam são as seguintes:
  1. Diz-se que a falta de mão de obra na região levou à contratação dos trabalhadores baianos. A bolsa farelo - segundo bolsonésio, que a implementou com mais força no final de seu governo - seria a responsável; garantidos 600tinha (R$ 600,00), as pessoas preferiam ficar em casa a trabalhar. Mas segundo as contratantes, o custo por trabalhador era de R$ 6.500,00 por mês! Algo está muito errado nessa estória! Querem me dizer que por um salário de R$ 3.000,00 (a outra metade são custos trabalhistas) não encontrariam alguém? As próprias vinícolas não conseguiriam fomentar em sua própria região uma cooperativa de catadores de uva (sic) por, digamos, R$ 4.000,00? Nada faz sentido!
  2. Cúmplices - não há o que negar! - em esquema de escravidão, o que causou sofrimento sem igual e inesquecível às vítimas, o que os empresários fizeram para amenizar - e não mais! - a situação dos trabalhadores que já estão voltando para suas casas? Alguma bonificação ou indenização voluntária para os pobres-diabos explorados pela sanha de tranqueiras sem o menor escrúpulo ou compaixão? Não vi (quero dizer: avise-me se souber, para que seja feita justiça!). O que iguala os viticultores aos bandidos. 
   Fala-se em pagamento de R$ 600 mil aos trabalhadores, a título de danos morais. 600tão (R$ 600.000,00) por trabalhador? Não é o que entendi; seriam 600 mil divididos por 207, o que dá uns 3 milão para cada um. Aí está o valor de uma indenização por escravidão! Não é indenização, é escárnio, e alguém deveria ser enforcado por isso. Forca - e não fuzilamento - é a punição histórica para traição. E traição é o perpetrado por tais bandidos: traíram tudo o que o cidadão de bem pensa sobre igualdade, fraternidade e liberdade - soa algo familiar? Sim soa às declarações de conduta assumidas pela caterva de produtores. Lamentavelmente a pena de morte é proibida pela constituição. Precisamos mudá-la. Contudo, há uma forma óbvia para o cidadão de bem dar o troco nesses bandidinhos que além de tudo insistem em continuar nos enganando: não comprar mais seus produtos. Se fiscalmente tudo isso é coisa de amador, esse mesmo amadorismo explica a qualidade dos seus vinhos. Chega de tanta enganação. Chega de pagar caro por essa suja misturada a álcool que chamamos vinho.

Saturday, February 25, 2023

Não vi, não sei, não comungo

Introito

Reporta-nos O Antagonista que o Ministério Público do Trabalho resgatou 180 (parece que o número é maior) trabalhadores mantidos em situação análoga à escravidão. Contratados como simples terceirizados para fazer a colheita das uvas, laboravam para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. As vinícolas foram rápidas em posicionar-se:

A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.

Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada. Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia.

A Família Salton repudia veementemente e não compactua com nenhum tipo de trabalho sob condições precárias, análogas à escravidão. A empresa e todos os seus representantes estão solidários a todos os trabalhadores e suas famílias, que foram tratados de forma desumana e cruel por um prestador de serviço contratado.

  Suas políticas de responsabilidade social estão expressas e assumidas em seus sítios:




   Contudo, diz O Antagonista:

   Percebeu? Os trabalhadores eram submetidos a jornadas exaustivas... Isso só podia acontecer em seus locais de trabalho, ou onde mais? Se não for assim, seguimos na argumentação: essas pessoas trabalhavam lá também (digo, nas vinícolas). Como as contratantes tratavam seus terceirizados? Não trocavam uma palavra - sequer uma reunião de instrução?! Não ofereciam um mísero copo d'água na jornada laboral deles? Como ficam as conversas moles de certificação da qualidade de serviços internos, a vida em harmonia ou a integração dos aspectos sociais em todas as etapas do processo produtivo?! Canalhas! Sendo inocentes nessa estória vexatória, está claro não prezarem o mínimo pelas próprias declarações sobre suas responsabilidades. Não deixam de enganar seus consumidores com essas evasivas! Nisso igualam-se aos importadores safados que nos cobram os tubos por seus vinhos sob alegações já rebatidas neste espaço. No final as velhas estórias de sempre: não vi, não sei, não comungo. Onde é que já ouvimos essa desculpa, mesmo? No mensalão? Imaginava os produtores (não todos!) baixos, pelas estórias antigas de salvaguardas, selo de distribuição e outras. Jamais imaginaria que descessem tanto.

Revendo um velho amigo - e comemorando à altura

Don Nagibin, o bom Palestino, amigo dos tempos de graduação ('83), passou por aqui estes dias. Sentiu a morte do Akira, e remanejou alguns dias de suas férias agendadas desde o ano passado para que pudéssemos nos sentar e reviver juntos alguns momentos com ele e nossos também. Sua esposa Magide conhecia o Akira desde nossa visita ao Chile, ali por 2010, 2011. O varão Mateus era muito novo, então. Sentamo-nos um dia na adega e outro para apreciar um bifão no restaurante Barone. Vou falar desse encontro. Após conversar com Don Flavitxo - não pôde comparecer, infelizmente - mencionei de abrir um Numanthia 2003; ponderei se 24 horas de aeração seria bom. Ele foi liberal (libertino?):


  Uma horinha?! Abrira recentemente outra garrafa de Numanthia em 2020, e a decantara 24 horas. Acho que meu ilustre compadre sisqueceu, ou inadvertidamente pulou a postagem. Desta vez demorei um pouco, e fui abri-la por volta da meia noite, para degustá-la no almoço. Experimentei com Nagib; ele olhou para mim surpreso e murmurou um 'nada' quase desapontado. Respondi com a sugestão dele guardar a impressão para o dia seguinte; e lá pelas 13:00 estávamos instalados no Barone.

Nagib provou novamente e olhou-me curvando as sobrancelhas: 'uau!'. Era isso: a transformação dera-se ainda que parcialmente; Numanthia estava bem mais palatável mas um tanto fechado; muita fruta, muito corpo pelo tanino e madeira, claramente preso, principalmente os taninos ainda pegados. Mais seis ou oito horas fariam diferença? Não estou certo... combinou bem com o prime rib (por aqui carinhosamente chamado de pirulito), porque sua gordura era facilmente lavada da boca pelo gole seguinte; Numanthia é um vinho bastante seco, seco sem dó nem piedade (rs), e não sei quanto isso contribui para a mega limpeza (sic!) que ele promove em boca. Parece que a garrafa anterior, de 2020, estava mais solta... ainda que pese a maior aeração. Velho ditado: cada garrafa é uma garrafa. Sua permanência é verdadeiramente longa - não o 'longa' que dizem por aí sobre vinhos de 50tão - e a acidez é pronunciada. Esse 100% Tempranillo tem janela de beberagem 2006-2016, segundo a Wine-Searcher, o que é um claro erro. Entre 2026 e 2036 estaria mais correto - e a despeito do ditado! Algo teria de dar muito errado para Numanthia amaciar-se em menos tempo. Tivemos ainda um I Giusti e Zanza Belcore 2019, mas ficará no comentário da próxima postagem, com outro vinho, degustado no dia anterior.

A borra, essa incompreendida...

A borra aparece naturalmente em vinhos mais velhos como um acúmulo de sedimento no fundo da garrafa. Servidas junto do vinho aportam um amargor intenso ao sabor, fazendo o paladar discrepar. Ela não altera o sabor do vinho quando precipitada, e por isso garrafas mais velhas não devem ser transportadas ou agitadas e abertas em seguida, pois o perigo da borra misturar-se ao vinho e conferir-lhe um sabor diferente é muito grande. Uma boa providência é usar um decantador, vertendo o conteúdo diligentemente, e observando quando a borra começa a passar para o decantador. Pode-se deixar esse resto na garrafa e os bebedores contentem-se em verter o restante com muito cuidado para suas taças, se desejarem. Certa vez ganhei um fundo de Ferreirinha Reserva Especial em uma degustação realizada dentro da degustação em que participada; havia um preço suplementar para se provar algumas garrafas muito diferenciadas. Grande parte do conteúdo era borra. Tive o cuidado de ir deixando a borra decantar e ia entornando a taça muito vagarosamente para sorver o vinho em pequenas quantidades, enquanto virava a taça para que a borra se acumulasse pela lateral, quando conseguia sorver mais um pouco - veja a foto. Repetia o processo, aguardando que a borra novamente precipitasse no fundo da taça. Foi uma experiência maravilhosa.

Não sabia à época: embora a mistura da borra confira ao vinho um sabor indesejável, ela com um pãozinho fica bem palatável! Aprendi essa com o Akira. E preciso comentar que essa borra proveniente do vinho envelhecido tem sabor diferente da borra nova de vinho não filtrado. Reflito que essa borra do vinho envelhecido é... quanto? Um por cento do conteúdo? Menos, até... se o vinho devidamente envelhecido já é considerado uma exclusividade - ah, quanto boca mole por aí não comete barolicídios, brunelicídios, borgonhicídios e outros cídios sem conta (sic! rs!) - imagine esse 1%, o quão exclusivo é! E descartamos sem a menor curiosidade de ao menos experimentar! Portanto, leitor desavisado, se estiver numa ocasião dessas em alguma degustação, olho no fundo da garrafa! Alguma oportunidade espetacular pode estar sendo desperdiçada por enólogos incompetentes e sem noção do que servem. E, na dúvida, se estiver indo para alguma degustação, seja precavido: leve meio pãozinho no bolso para qualquer eventualidade! 🤣🤪


Para registro,






Saturday, February 11, 2023

Marcelo Akira Miho 4/2/1975-1/2/2023

Marcelo Akira Miho 4/2/1975-1/2/2023

Às vésperas de completar 48 anos meu amigo Akira, tantas vezes referenciado no blog e cuja amizade estendeu-se por mais de 20 anos, faleceu devido a problemas renais desencadeados por uma doença autoimune que há três ou quatro anos obrigara-o a parar de degustar vinhos. Se ele não podia sorvê-los, divertia-se analisando-os somente pelo olfato. Como estávamos juntos em várias confrarias distintas, para mim passava por maçante o prodígio de sua capacidade de desvendar vinhos sem levá-los à boca. Não é que acertasse o país... para vinhos bons, de terroir, costumava acertar a região. Alertado de já ter provado de algum produtor, acertava o vinho. Aqui o leitor encontra apenas um exemplo das inúmeras vezes em que ele surpreendeu alguns convivas sem jamais expressar a menor ponta de ostentação ou orgulho: humilde, explicava-nos por quais percepções notava a origem do vinho analisado. Recebi esta foto de Don Flavitxo, o Flávio do blog vinhobão com a seguinte mensagem: Essa é a imagem é a que quero ter do Akira... Preciso dizer que concordo?

Don Flavitxo, sabidamente um dos meus mentores intelectuais quando o assunto é vinho - junto do Akira, que trouxe-o para nossa confraria de dois - juntou-se a nós em vários encontros, quando protagonizamos reuniões memoráveis. Com o Akira, bebíamos e discutíamos como cachorros: cada um apontava as ideias estúpidas um do outro recorrentemente na mesma sentada, ao final das quais brindávamos ao vinho e, sem dizer as palavras, à amizade e respeito mútuos. O Flávio ofereceu nova dinâmica às conversas, porque então brigávamos todos contra todos em separado ou dois contra um, sem ressentimentos, e em qualquer alternância possível. Esse cenário até monótono só era quebrado nas raras vezes em que convidávamos o Romeu: nessas ocasiões, invariavelmente e sem combinar previamente, acabávamos todos contra o convidado que saía dos encontros devidamente espinafrado mas igualmente feliz. As profundas divergências em nossas visões de mundo em nenhum momento impediu que trocássemos impressões sobre elas, com comentários que podiam até ser pesados mas nunca desrespeitosos. Pessoas assim são raras. 

Outro grupo nosso eram As Meninas (foto acima), como costumávamos chamá-las: Dani, Rê e Carol, formavam o núcleo duro com eventuais adesões das amigas de cada uma delas. Os encontros podiam não versar sempre sobre vinho, mas o tema não era raro; essa turma gostava mais de um barzinho com música ao vivo, de dançar (elas!), ou mesmo de um jantar fechado aí sim regado a vinho, mas sem o compromisso da apreciação técnica, o que fazíamos Akira e eu em breves conversas enquanto o encontro se desenrolava. Uma conexão que gostei de cometer (sic) no blog foi Machado de Assis e o Apê da Carol, em 2014 e por ocasião da 'inauguração' do apartamento dela. Com o paladar um pouco sofisticado pelo meu primeiro borgonha (também oferecido pelo Akira), estranhei a aspereza de um vinho - o Finis Terrae - que até então tinha na memória como modelo de maciez. Foi um daqueles momentos em que percebe-se, com a sutileza de quem recebe um piano de cauda na cabeça, como nosso paladar muda com o tempo, muitas vezes sem que nos demos a menor conta.

O tempo e o acaso foram generosos conosco. A dado momento conheci casal proprietário de franquia de café lá no centro. Tudo errado: ele era na verdade professor titular aposentado da USP; ela, médica. A franquia, uma diversão. A Sra. N, Neusa, debutou no blog na tão fantasiosa quanto nervosa missiva a este mentiroso de plantão. Algum tempo depois do encontro fortuito comentava para o Akira sobre a nova amizade e ouvia dele que ambos - Wilson e ele - ministravam aulas na mesma faculdade em Araraquara. Foi assim que, em julho de 2019, juntando o Jacimon, amigo com idas e vindas de e para São Carlos por motivos profissionais, e o Romeu, eterno coringa de várias degustações em confrarias diversas, nos reunimos para prestar homenagem aos 50 anos da primeira alunissagem. Foi outra postagem que curti muito ter cometido (rs), principalmente a parte do macaco fazendo um sinal de não com o indicador enquanto recusava-se a entrar na Sputnik 2...

A confraria iniciada com o casal expandiu-se um pouco com o precoce falecimento do Wilson. Vieram a Margarida e a Elvira, amigas da Neusa, e o Ghidelli, amigo nosso, retornando ao país após certo tempo trabalhando no exterior, junto da Márcia, sua esposa. O Ghidelli chegou à confraria com muita experiência e conhecimento, principalmente sobre vinhos europeus, e muitas vezes descobria a procedência de vinhos de maneira certeira e elegante. Se treinar mais uns 200 anos (🤣), fica como o Akira. E deixemos claro que isso não é nenhum desabono, muito pelo contrário. Este Enochato que vos engana jamais poderá competir com o Ghidelli, quanto mais aspirar chegar aos insights do Akira. Na loteria da genética, a memória olfativa é - como em toda loteria - uma dádiva para poucos...

Eis que em algum momento de '22 apresentei o Akira às Moiras, confraria formada por pequeno grupo que se encontrou nos eventos Vinho e Turismo realizado pela Vinho e Ponto de S. Carlos e sucedeu ao grupo Camarão com Vinho - por sua vez uma dissidência (rs) da Noivas de Baco. Já mencionara o Akira a elas, que por por seu lado também haviam lido sobre ele nas postagens do blog; estavam então mais do que curiosas para conhecê-lo. Na foto ao lado, infelizmente, faltou a Luciana; a postagem está aqui e lá tem foto dela também... É claro que a empatia entre as Moiras e o Akira foi instantânea; seu jeito simples e fala tranquila conquistou-as de imediato e quando perguntei-lhes se gostariam de vê-lo em outros encontros, a resposta foi que gostariam de vê-lo em todos os encontros...

Cometendo diversos esquecimentos e pecando por abreviar esta narrativa, omitindo a recepção digna de realeza que recebemos do Nagib e da Magide quando visitamos esse meu outro grande amigo em convalescência lá por 2010, ou em encontros com o Paulo Marcos e o Whisner, ou com a Beth e a Isabela, ou o Alexander e Raquel, dentre muitos, muitos outros, vou convergindo para a reflexão de que o Akira não seguia qualquer religião. Isso não impede que 99% de seus amigos - eu, inclusive - acreditemos que o Além, qual seja sua manifestação, ganhou um ilustre morador. Vá lá, meu amigo. Encontre-se com seus antepassados, em especial aquele seu parente samurai, dono da espada que saiu vitoriosa da última contenda da qual participou, carregando em seu fio o sangue do oponente. Quem sabe a mana Simone não me manda uma foto da espada ancestral que permanece em sua família, de cujas tradições você carregou e honrou durante seu tempo por estas paragens. Prazer em compartilhar tantas experiências e momentos divertidos consigo!