Monday, December 31, 2012

Vistalba: uma bodega argentina

   O Dr. Marcão estava preocupado. Andava de um lado para o outro na aconchegante sala de sua casa; sentava-se e, sem encontrar posição, levanta-se e começava a andar novamente. A um dado momento parou, olhou fixo, suspirou fundo e tomou a decisão. Tomou o telefone, discou com dedos trêmulos e aguardou ansiosamente os toques da chamada. O outro lado atendeu com um "Alô?!".
   - Carlão, é o Marcão. Estou aqui com um Vistalba Corte A 2007 double magnum, e precisamos dar um fim nele logo. Só que a garrafa é grande, precisamos de bastante gente.
   - Marcão, uma double magnum? Isso dá três litros... é, vamos precisar de reforços... devo acionar a caterva?
   - O mais rapidamente possível, conto com você. Só me avise o lugar e o horário.
   Foi assim que, em mais alguns dias, estava reunido o comitê para dar cabo de um vinho que, eu sabia de antemão, prometia ótimos goles. Para tanto, juntaram-se a nós o Ghidelli e o casal-20 (quase casal-30) Endrigo e Vânia, e o 30 ficar por conta do rebento que vem por aí. Sinal de que o casal-20 passará momentaneamente a casal-10, uma vez que apenas o Endrigo poderá manguaçar pelos próximos meses. De qualquer maneira, gente mais do que suficiente para a tarefa. O palco da degola foi a área de eventos da casa do nosso querido casal. Sobre o cordeiro (o vinho, não o prato):

carlospulentawines.com

   Este é o endereço eletrônico da Bodega Vistalba, um projeto iniciado em 2002 por Carlos Pulenta em sua finca situada em Lujan de Cuyo e cuja proposta é dedicar-se, majoritariamente, a vinhos de corte. Ainda são produzidos na bodega bons varietais, um espumante e azeite de oliva. Mas antes, vamos dirimir uma pendência.
   Lujan de Cuyo é um Departamento que fica na porção leste da Província de Mendoza. Portanto, um departamento é uma seção administrativa de segundo nível em uma província. Assim, penso que Lujan de Cuyo possa ser entendida algo como uma appellation d'origine de Mendoza, com vinhedos a uma altitude de 1000 metros e onde a Malbec expressa suas características de maneira quase inigualável, embora outras variedades também produzam bons exemplares de vinhos. Corte A é o vinho premium em uma hierarquia que começa com o Corte C, mais básico, seguido do Corte B. A vinícola produz ainda o Tomero, com suas linhas Clássico, Reserva e Gran Reserva, cada qual com seus mono-varietais (ou seja, vinhos 100% de uma cepa; um varietal simples ainda pode conter uma certa porção de outra cepa - até 15% - sem mencionar esse dado). O Tomero Reserva Pinot Noir 2007 é o melhor Pinot sul-americano que já bebi (embora não tenha bebido Pinots de outros lugares - rs!).
   Vistalba Corte A, safra 2007: 64% de Malbec, 29% de Bonarda e 7% de Cabernet Sauvignon, envelhecido por 18 meses em barricas francesas e outros 12 meses em garrafa, 14,8% de álcool, impõem respeito pela qualidade: boa fruta, cedro e um pouco de chocolate aparecendo com a evolução após a abertura da garrafa; boa acidez, muito redondo, apontando para ótima estrutura. Acompanhado de boa carne, ficou ainda melhor. Seu potencial de guarda é estimado pelo produtor em 20 anos, o que indica termos cometido um infanticídio. Mas ninguém reclamou... valeu pela oportunidade, Marcão!

 Vistalba Corte A, safra 2007: olha o tamanho da "ninina".

PS: o Ghidelli a toda hora reclamava: "É muito vinho" - seu bordão obrigatório em degustações e eventos do tipo. Mas bebeu como todo mundo, e com gosto.

Feliz 2013 a todos.

Sunday, December 30, 2012

Postagem de uma nota só

   Para gáudio dos seguidores, tentarei que esta não seja a última postagem do ano. Da mesma maneira, espero que a nota dada a ela não aproxime-se do título, ficando na marca unitária. Há algum tempo (agosto...), postei sobre um vinho romeno. Agora vai outro. Tanto este exemplar como aquele foi comprado pelo marido da Raquel, um adorador de chás e completo abstêmio, o que salva nosso brilhante companheiro da culpa por comprar um vinho chamado... La Cetate...(!) Lembra O Acetato, não? Ahn... bem, reconheço, este não é um bom começo; dirão que estou de má vontade para com o vinho. Vejamos o rótulo - e vamos dar um desconto, ele está detonado por minha culpa; tratei mal a garrafa, como o leitor poderá acompanhar mais abaixo.

   Como meu romeno não anda muito em dia, deu um trabalho enorme decifrar o rótulo. É claro, não precisamos ser experts para decifrar o tipo da uva. O resto é que são elas... Bem, Crama Oprisor significa Adega Oprisor, e é o produtor deste Pinot. La Cetate (A Cidade) Miracol (Milagre) sugere A Cidade Milagrosa, ou ainda A Fortaleza Milagrosa, e é a "família" destes vinhos, que existem também nas variedades Merlot, Cabernet Sauvignon e Chardonnay, além da Shiraz, embora com rótulo diferente.  A região, Dealurile Olteniei, fica ao sul do país, fronteira com a Sérvia e a Bulgária, e distante do Mar Negro, o que sugere um terroir mais continental.
   Bem, como podemos observar do rótulo, os dois cidadãos (rei e rainha?) nada sugerem de Fortaleza Milagrosa. Assim, fechamos com La Cetate Miracol, Pinot Noir 2009, produzido pela Vinícola Oprisor, 14% de álcool. No nariz, boa fruta, mas curta (sic). Na boca, muito ácido - e não era acetato, o vinho não estava estragado. Desbalanceado, sim. Copo médio, final curto como o nariz. Muito simples, levando-se em conta o preço (cerca de 40 euros).


Miracol La Cetate Pinot Noir 2009: 14% de álcool, e mais nada.
 
   A curiosidade pode ficar por conta do sítio do produtor: outros vinhos com rótulos realmente sui generis (cuidado para não se assustar ou enrubescer com alguns deles).

Tuesday, December 25, 2012

Um post de Natal

   Depois da boa receptividade a algumas resenhas por parte deste dublê de escritor, abro a postagem já mencionando um trabalho literário. Não vou resenhá-lo, apenas recordar o leitor. Um pouco por causa da data, escolhi como título da postagem um que guarda similaridade com o título da obra. Muitos referem-se a Um Conto de Natal querendo dizer A Árvore de Natal na Casa de Cristo, de Dostoiévski. Assim como o Natal acontece todo ano, a humanidade deveria ter esta obra como leitura anual obrigatória; deveria ser lei em todos os países, ou pelo menos nos países sérios. Você, leitor ocasional, que chegou a esta página provavelmente por engano, siga o vínculo acima se estiver com pouco tempo, e deixe a leitura desta postagem para outra hora.

   Para quem voltou da leitura do curto conto de Dostoiévski, começo a rememorar uma conversa ocorrida há muitos anos, e que apenas há pouco começou a fazer sentido. Aproveitava-me da indulgência do Homero, proprietário da Adega Paratodos, em Botucatu, discorrendo sobre quão virtuosos eram os vinhos chilenos que eu costumava a beber: tarapacás (Leons!), reservados (sic) e outros, ao que o bom Homero atalhou com educação: - É verdade, mas se você pegar vinhos em uma faixa de preços mais elevada, verá que os vinhos sul-americanos não competem com os europeus. Minha pequena adega era então quase que só constituída por argentinos e chilenos, mais estes do que daqueles, onde só um eventual Periquita representava o Velho Continente. Confesso que demorei a prestar atenção aos vinhos europeus, primeiro pela impressão de que aquilo que nos chegava no preço dos chilenos citados não agradava, e quando era possível viajar para o Chile, trazia vinhos mais icônicos por preços razoáveis. Com o aumento dos preços no próprio Chile (vários ícones literalmente dobraram de preço em dólar), a atenção começou a recair sobre nosso freeshop, onde o cidadão precisa ficar muito atento para não acabar comprando um produto que custe o mesmo preço que em nossas ruas, e não precisa ir até a Santa Ifigênia para tanto. Foi assim que, mais ou menos na mesma época, acabei trazendo um Tarapacá Milenium 2005 e um Roquette e Cazes 2006. E na noite de Natal, sem ainda ter-me lembrando do Dostoiévski, mandei ambos para o abate.

Tarapacá Milenium: 14° de álcool, Cabernet Sauvignon, Syrah e Merlot, 13 meses em barricas francesas.
Roquette e Cazes: 15° de álcool, Touriga Naciona, Tinta Roriz e Touriga Franca, 18 meses em barricas francesas.


   Após decantar ambos por três horas, o Milenium mostrou taninos bem presentes - e não muito domados - bastante madeira, frutas e fumo. Mas a madeira estava por cima de tudo, querendo toda a atenção do degustador. Já provei Etiqueta Negras e Last Editions mais redondos. Final longo, mas sem encantar. Já o Roquette não: pouca madeira, no sentido de melhor integrada ao conjunto, frutas leves e algo lembrando chocolate. Apesar de mais alcoólico, mostrou-se muito mais redondo que o Milenium. Final igualmente longo com muito mais prazer e mais delicadeza. A grande questão, para mim, foi: como, apesar de tanta madeira, o Milenium não "matou" o Roquette? Darei um chute como possível explicação: As vinícolas chilenas têm em média 150 anos, enquanto a Quinta do Crasto está estabelecida desde 1615... tanta experiência deve fazer alguma diferença...

Ótimo descanso neste dia 25 de dezembro, preferencialmente acompanhados de bons goles!

Thursday, December 6, 2012

O Vinho: uma paixão para todos

   Desde o início do blog fiquei me perguntando quando eu começaria a misturar as coisas. Até que resisti bem, mas chegou a hora de juntar minhas duas maiores paixões mundanas: vinhos e livros. Antes, preciso mencionar: para minha surpresa(!), a lista de seguidores vem aumentando. Havia notado anteriormente, mas principalmente a última postagem não era aquela onde gostaria de ter tocado no assunto. Assim, bem-vindos Vitor, Hernani, Ariane e Paulo. Olhem, o blog é feito para minha diversão (risos!), mas para a de vocês também. O Vitor já deixou comentários, e estão todos convidados a tentar (gargalhadas), já que esta ferramenta às vezes complica a vida do internauta. E olhem que deixo tudo "aberto", qualquer comentário é publicado na hora. Se não quiserem escrever, divirtam-se da mesma maneira.

   Assim, esta postagem será dedicada à mais importante fonte de informação de que dispomos, principalmente pela sua confiabilidade. Aliás, muita "gente boa" da internet deveria ler um pouco antes de postar bobagens - em todos os assuntos, não apenas sobre vinhos. Ler recicla. E reciclar é preciso (continuamente!). E é nessa toada (reciclar é preciso) que acabei por consultar outros livros além do que comentarei aqui, para... poder escrever com conhecimento de causa! Tudo a seu tempo.

O Vinho: Uma Paixão Para Todos, de Paulo Augusto Almeida Seemann, com tradução e adaptação de Alfredo Terzano e Mariana Gil Juncal. Editora Senac, 266 páginas, 2010.



Foi assim que presentou-me o Flávio Vinhobão Henrique Silva, com um livro sobre o qual já havia lido boas referências. E pude confirmar outras resenhas: divertido, bem humorado e ricamente ilustrado, O Vinho, pela leveza e forma interessante de abordar cada assunto, é uma obra dirigida mais aos iniciantes do que aos iniciados. E, pelo bom humor, a diversão pode ser saboreada também pelos mais conhecedores, sem perda de paciência (rs). Vai então que sua indicação para um público de maior espectro tem sua razão de ser.
   Com a leitura desse livro e minha própria experiência em conversar com pessoas em degustações, acabei com a seguinte reflexão: mesmo quem bebe muito - mais no sentido de "sempre" do que de "litragem" - por si só não torna-se um conhecedor de vinho. Mesmo que seja uma turma. Fechada em si mesma, sem troca de ideias com pessoas mais "experientes" (no final, mais lidas!), é sempre difícil progredir. O leitor - ou a turma - poderá frequentar degustações assistidas (realizadas por um sommelier que realmente conheça, não esses que fazem cursos de 20 horas e recebem um diploma) e progredir de algum tanto. Mas, considerando que esse tipo de situação é bem eventual, a progressão acabará sendo lenta. Contra a ignorância, ler ainda é o melhor remédio.
   A leitura de O Vinho fez-me lembrar de situações que nós bebedores vivemos no dia-a-dia. Por exemplo, volta e meia em nossas degustações reaparece a questão: qual vinho beber primeiro, o "melhor" ou o "pior"? Como esse debate já foi levantado por mais de uma pessoa, inclusive, parti para uma leitura à vista armada sobre diversos detalhes do serviço do vinho. Cá para nós: como minha escola é a chilena, onde os melhores vinhos dos principais produtores são cada vez mais "pegados", sempre esteve claro que começar pelo "melhor" vinho teria o efeito de inibir a presença dos mais simples. Algumas pessoas também comentam, com alguma propriedade (assim eles pensam! - risos!) que após degustar alguma quantidade (e que pode variar de 200 mL a 350 mL - e então eu pergunto: por que não 1 L?), perde-se o paladar para degustar um vinho muito melhor do que os demais, daí ser melhor começar pelo melhor e depois os não tão melhores. Ok, esse é um argumento, embora eu sempre acredite que o pessoal é fraco de copo e queira ir logo para o melhor. Então vamos chamar os livros (e seus respectivos especialistas).
   Em O Vinho, p. 244, lemos: "A ordem do serviço dos vinhos: uma regra de ouro do serviço é que os vinhos sempre devem ser servidos por ordem crescente de importância". E continua: "Um grande vinho nunca é servido sozinho em uma refeição... ele precisa de coprotagonistas, ou seja, outros vinhos".
   Manuel Beato, no Guia de Vinhos Larousse (ei, lembram a estória de se reciclar? Pois, vamos às outras fontes), é claro: "A sequência do serviço: Em geral, vinho seco antes do vinho doce. Vinhos fracos, antes dos fortes. Na maioria das vezes, brancos antes dos tintos" (p. 32).
   Já em Vinhos do Mundo Todo - Guia Ilustrado Zahar,  encontramos: "Ordem do serviço: tintos leves antes de encorpados - os mais leves parecem ralos após um mais encorpado; vinhos de menor qualidade antes dos mais nobres", (p. 646).
   É assim que, amparado por boas referências, até um mané como eu pode pegar o boné e enunciar sua própria lei, para combater certos vícios dos colegas ao lado:
Vinho não é para fracos! (rs)
   Eu tenho certeza de que cada amante de vinho tem suas dúvidas, e encontrará nos livros alguma resposta que se aproxime das questões. Dentro desse contexto, O Vinho: Uma Paixão Para Todos, pode ser um bom ponto de partida. A conversa sobre vinho acaba aqui, mas se quiser uma dica, continue lendo.

Uma obra-prima em 130 páginas


O Ladrão e os Cães, de Naguib Mahfuz, L&PM. Abreviarei todos os elogios que a obra merece neste: o autor ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1988. Ok, você pode dizer que às vezes o pessoal do Nobel pisa na bola, e eu sequer posso retrucar. Mas não é o caso, creia-me. Embora seja considerada um livro de ruptura dentro da produção de Mahfuz (não li as demais), o estilo é de uma simplicidade e ao mesmo tempo de uma riqueza que assustam o leitor mais atento (aquele que sabe apreciar tais detalhes). Não há comparação possível com um vinho, infelizmente, já que um vinho não pode ser simples e complexo ao mesmo tempo. Mas é um livro que merece o acompanhamento de goles esporádicos de um bom Barolo, ou de um Napa Valley bem típico enquanto acompanhamos a descida do protagonista, Said, ao seu inferno particular. Um romance psicológico de primeira linha associado a um thriller onde Said (o ladrão) procura vingança junto àqueles que o traíram (os cães). Como contei o enredo que é apresentado nas primeiras cinco páginas, o leitor ainda terá outras 125 para degustar. Boa leitura.