Wednesday, April 4, 2012

Merlots e agradáveis surpresas

   Uma cepa tem atiçado minha curiosidade há tempos: a Merlot. É uma variedade internacional, cultivada em praticamente todos os países produtores de vinho, tendo na margem direita do Bordeaux a região que melhor representa essa excelência (quem aí nunca degustou um Château Pétrus? - rs sarcásticos). Aliás, um parêntese: ao contrário do que se pode pensar quando dizemos "a margem direita do Bordeaux", Bordeaux não é um rio, mas uma cidade portuária às margens do rio Garonne. E Bordeaux também é a sede da empresa Dassault, aquela mesma que está louca para comprometer nossa segurança aérea vendendo-nos uns teco-tecos que foram rejeitados por todas as potências de segunda linha do planeta, tendo vendido algumas peças para algum paiseco de quinta, cujo nome não me lembro agora. Deixando essas informações de almanaque capivarol de lado, voltemos à uva e ao vinho.

   Merlot - como todas as cepas - expressa-se de diferentes maneiras conforme o continente onde é plantada (deixemos essa estória de terroir de lado e sejamos o mais gerais possível). Segundo o livro Vinhos de Todo o Mundo (Guia Ilustrado Zahar),  produz vinhos mais leves e fáceis de beber no Chile, um pouco mais encorpados na Austrália, potentes em Bordeaux e bastante pronunciados na Califórnia. Merlot é encontrada em vinhos varietais (de uma variedade de uva, apenas) ou em cortes (mistura de vinhos). No Chile, quando aparece em cortes, é quase sempre minotirário, ao contrário de Bordeaux e do Napa Valley.

   Minhas poucas experiências com ela revelam que seus varietais devem ser bebidos após boa decantação, mesmo para exemplares modestos. Citarei exemplos que, acredito, podem jogar mais dúvidas na questão do que elucidar qualquer coisa (risos); de qualquer maneira é o leitor quem deve meditar a respeito e ou tentar reproduzir essas brincadeiras ou compor as suas próprias.

   A primeira situação aconteceu na companhia do Flavitxo do blog Vinhobão há 15 dias, e envolveu três Merlots diferentes:
  • Má Partilha 2007 (Portugal)
  • Stags Leap 2005 (Estados Unidos)
  • Terra Matta 2009 (Suíça)


   Após receber o Flávio, descemos para a adega onde os dois primeiros já estavam abertos. Ainda na escada ele percebeu algo no ar, e depois identificou como o Stags Leap. Apesar do aroma chamar atenção, não é tão potente na boca. É mais macio do que potente. O contrário dele apresentou-se na taça do Má Partilha, mais potente e menos complexo. O Terra Matta, mais leve, ficou comprometido pelo que eu genericamente chamo de baunilha (rs). Vários vinhos possuem alguma especiaria que para mim é baunilha e bate em cheio logo que levamos a taça ao nariz. Quem já bebeu vinhos portugueses como o Crasto Douro (safras recentes) e o Crasto Superior, ou argentinos como o Rutini Cabernet-Malbec 2009 ou o Alma Negra (safras recentes, pelo menos), sabe bem do que estou falando. Não é que eu não goste desse tempero, mas no meu caso eles acabam por impregnar minhas vias olfativas a ponto de não permitirem-me perceber notas secundárias. Eu também acho que esse tempero compromete muito a diferença que o terroir pode fazer na elaboração do vinho, jogando por terra nossa capacidade de julgamento sobre sua procedência. Também é verdade que essa forma de produção parece estar em alta nos países produtores. Está bem que o vinho fica mais fácil de beber, ajuda a conquistar novos adeptos, mas como nada é de graça o custo a pagar é a produção de uma bebida apátrida, justamente o contrário do que um bom bebedor espera da sua bebida preferida. Mas voltemos aos Merlots.

   O final da celebração não poderia ser diferente: com apenas dois bebedores para três garrafas, o melhor vinho acabou primeiro, e o pior sobrou pra contar a estória. E que grata estória! No dia seguinte, à noite, o Akira passou para uma conversa rápida e teve de aproveitar uma taça do Má Partilha que ficou devidamente arrolhado na geladeira. Vinho na taça recobrando uma boa temperatura, o buquê começa a subir e então esse exemplar da Bacalhôa diz a que veio. Sem a tal da baunilha (rs), mostrou seu caráter com notas de café (chocolate? sempre faço uma bela confusão...), sem amargor e retrogosto marcante, um vinho realmente elegante. Fica pendente a discussão de como servir bem esse vinho, que eu já havia provado duas vezes anteriormente e que também não havia me convencido. Após um dia descansando, mostrou-se outro.

   A segunda experiência aconteceu na presença do mesmo Akira, do Endrigo e da Vânia, os dois últimos exímios bebedores (rs) e membros da ABS-São Carlos. Abrimos um Rutini Cabernet-Malbec 2009 e eu já tinha pronto no decantador um "vinho surpresa". Pedi a todos que comentassem, e das diversas opiniões algumas tiveram boa concordância: não era uma cepa comum em nosso dia-a-dia; não era um vinho novo; era um vinho bastante agradável, apesar de simples: tinha boa acidez e sem amargor. E, para a surpresa geral, o chileno Leon de Tarapacá 2004 - Merlot! - fora aberto na noite anterior e permanecera arrolhado na geladeira (após eu retirar uma taça medicinal, afinal não sou de ferro).
León de Tarapacá 2004, bebido em 20012: ainda um bom exemplar de um vinho simples. Ao longo dos últimos anos experimentei safras antigas de vinhos simples, quase todas as garrafas em boas condições (claro, foram bem armazenadas). A pergunta que fica: de fato, quando tempo sobrevivem os vinhos mais simples? O meu palpite é que depende do vinho e da vinícola. Se alguém quiser palpitar...
 
Esse fato, além de evidenciar a questão de como servir um Merlot, levanta outra questão, digna de comentário posterior: diz-se que vinhos simples - como um Leon de Tarapacá - feitos em aço inoxidável, não são vinhos para se guardar tanto tempo. Esse estava muito bom. E outros de safra similares, que tenho bebido ao longo dos últimos anos, também têm-se revelado bastante bons (dentro do que tais vinhos podem ser "bons"), fato que, como propus no começo, mas confunde do que elucida nossos conceitos sobre "vinhos simples", "vinhos de guarda" e sobre o serviço do vinho. Vou procurar outros incautos e realizarei novas experiências proximamente.

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