Tuesday, August 3, 2021

A pesquisa nacional e a poda de inverno nos vinhedos

Introito

   Vamos de saída a uma ameaça. Sim, o leitor leu corretamente. A ela: que nenhum mal informado, salafrário de má fé ou leitor com deficiência de interpretação venha dizer que a coluna não valoriza a pesquisa nacional. Não vai gostar do que ouvirá! O pesquisador nacional via de regra é muito sério. Falta-lhe senso crítico, é verdade, mas não podemos, de maneira geral, duvidar de sua competência e boa fé naquilo que ele pesquisa. Portanto, sim: os pesquisadores estão de parabéns antecipadamente. O resultado da pesquisas é que não pode ser levada a sério em seu contexto mais geral. 

Matéria do Diário do Comércio

   O Diário do Comércio é um jornal de Belo Horizonte, e publicou matéria onde exalta pesquisas levadas a cabo pela Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) sobre a técnica de dupla poda, que permite a colheita no inverno, período seco e portanto mais favorável para a colheita de uvas com maior concentração de açúcar. A matéria reporta ainda que a técnica vem sendo aplicada na Bahia e em São Paulo, Goiás e Brasília e estudos são conduzidos no Mato Grosso. Mais importante, cita nove vinhos regionais premiados em concurso internacional, amealhando medalhas de prata (1) e bronze (8). Observo que nosso país ganhou uma medalha de ouro com o Zanotto Sangiovese, da Vinícola Campestre; é a terceira conquista dourada da história segundo os dados anuais que remontam a 2007. O concurso é o Decanter World Wine Awards 2021, que avaliou  18.094 rótulos de 56 países. Citado na reportagem, o enólogo da Epamig Lucas Bueno do Amaral diz que
A técnica da dupla poda vem se mostrado (sic) muito favorável e permitindo a produção de um vinho de alta qualidade. Para se fazer um bom vinho, metade do caminho é ter uma boa uva. Com a técnica, conseguimos produzir uma uva sadia, com boa maturação, sem doenças fúngicas. Isso acontece porque conseguimos tirar a colheita do verão, que é chuvoso, e fazer no inverno. Por isso, estamos obtendo vinhos de muita qualidade.
   A vinícola Maria Maria teve seu Fernanda Sauvignon Blanc safra 2020 premiado. Para o engenheiro agrônomo e administrador dos vinhedos da Maria Maria, Eduardo Junqueira Nogueira Neto, o negócio está indo de vento em popa:
Este ano fomos novamente premiados. Ganhamos a primeira medalha em 2017 e foi surpreendente pelas uvas serem ainda jovens e não esperávamos este retorno tão cedo. Depois de 2017, quando tínhamos 10 hectares de uvas, ampliamos e hoje estamos com 21 hectares plantados. Nossa produção tem dado certo e nas cinco últimas edições do Decanter ganhamos prêmios em quatro. (grifo nosso)
   A reportagem comenta ainda que para a safra 2021, a meta é produzir 40 mil garrafas, com expectativa, para os próximos anos, de 60 mil garrafas por safra.

   A leitora Bárbara Aparecida Campanati deixou sua opinião na página do jornal:
E vejo também que há muita resistência do consumidor para com os vinhos nacionais. Paga-se R$ 100,00 num vinho importado mas não quer pagar o mesmo preço num vinho nacional.
ao que foi comentada pelo 'mediador'(?) Franc Virtu:
Verdade. Com o dólar alto, hoje em dia o vinho nacional nessa faixa de preço provavelmente é de qualidade similar ou melhor que um importado. Temos ótimos vinhos e temos muito a expandir ainda.

   Os leitores Orlando Santos e José Carlos Rosolia comentam ainda que é preciso baratear o preço dos vinhos sem perder a qualidade. Que o governo esfola o consumidor, e por isso não se consome mais vinho no país. O indefectível Franc Virtu volta à carga com explicações:
Essa é só a superfície... É preciso aumentar a produtividade tbm... No passado era comum dizer que a vitis vinifera não se adequava ao Brasil, mantendo-nos totalmente dependentes dos importados. Essa afirmação já foi refutada. Temos um mercado em franca expansão. O empresário precisa de auxílio, sim, mas não privilégios. (grifo meu)

Certo. Então vamos ao que o leitor não sabe...

  1. O certame de 2021 distribuiu, para produtores brasileiros, um total de 42 comendas. Para conferir, faça assim: vá neste endereço, selecione "year" (ano) 2021 e "country" (país) Brasil. Contudo, foram conferidas ao todo 179 medalhas de Platina, 635 de Ouro, 5.607 de Prata e 8.332 de Bronze, totalizando a bagatela de 14.753 medalhas outorgadas para os 18.094 participantes. Vemos que... 81.53% dos vinhos inscritos ganharam medalha ou comentário! Na escola do primário, era mais ou menos assim: bastava participar para receber um certificado. Lembra daquele menino espoleta (sic) da sua classe? Aquele tirava 80 de bom comportamento... do restante, todo mundo tirava 100...
  2. O Brasil está presente nesse concurso desde 2008, quando abocanhou um comentário favorável, e conquistou a primeira medalha em 2012, tendo acumulado desde então 322 medalhas ou menções.
  3. O Chile - país no qual este articulista gosta de bater, em função dos preços exorbitantes de seus vinhos e que, como digo, é o mais desimportante dentre os produtores importantes - está lá desde 2007 com medalhas de prata e acumula um total de 6.733 medalhas ou menções(!).
😅 Chu-pa, Bra-sil! 😂

   Então vejamos: o mais desimportante dos produtores possui, grosso modo, 23.7 vezes mais medalhas  ou menções do que nós. Veja só: 23.7x. E eu castigo os importadores porque suas margens mal excedem 4x ou 5x o valor do vinho lá fora. Eu sou um canalha, não é mesmo?

   O resultado preliminar desta postagem é a constatação de que a matéria tenta superestimar feitos mínimos alcançados pela nossa indústria, elevando a suposta qualidade do vinho nacional a um patamar pouco condizente com sua qualidade. A indústria está de parabéns pelos seus esforços, apesar de pouco profícuos. Pesquisar é o caminho, assim como debater sem paixões ajudará no aprimoramento do processo como um todo. Mas se ainda não ficou claro, caro leitor, esteja alerta, porque estão tentando enganar você. E como vimos alguns leitores - aparentemente de boa fé - caem na ladainha. É assim que anda nosso mercado interno de vinhos: importadores querem enganar você. Produtores querem enganar você. Muitos e muitos formadores de opinião (sic) querem enganar você. Cuide-se. E, como sempre, wine-searcher neles!

   A postagem está longa. Farei a parte 2, comentando um pouco mais. Não postarei comentários não identificados. O debatedor está obrigado a enviar nome e telefone (que será removido para publicação na seção de comentários), e entrarei em contato com ele para certificar-me de quem seja.

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