Saturday, November 15, 2014

Mais uma tunga para cima do consumidor - e desta vez sobra para o lojista

A título de introito

   Foi-se um ano e meio (pouco mais) desde a última e pouco convincente postagem. Muita água rolou... muito vinho rolou goela abaixo, e na maioria das vezes o Flavitxo Vinhobão deu conta de postar as bem-aventuranças por novos vinhos junto às velhas amizades que sempre saem fortalecidas (fortificadas?!) após esses encontros. As dificuldades em manter um blog apenas são conhecidas por aqueles que os escrevem, e assim não vou esticar-me em desculpas. E possivelmente continuaria no silêncio se fatos de extrema gravidade não tivessem acontecido diante destes olhos que vos escrevem(!) e mais um favor desinteressado para o bem da humanidade se fizesse premente contra os desatinos e desmandos dos filisteus. Portanto, leitor de coração fraco, pare a leitura ou mude de página imediatamente. Ainda por aqui? OK, continue por conta e risco. Avisei.

Apresentando os fatos

   Quase todo bom amante de vinho envolve-se em conversas animadas com seus lojistas preferidos, frequenta degustações, e, não raro, acaba mantendo contato com representantes de importadoras. Em qualquer dessas situações, é comum ouvir estórias que se repetem:
  • O imposto sobre os vinhos é de 180%. Já escrevi aqui uma vez: é apenas 50%. Tá, subiu um pouco desde então, mas na média é apenas 65% (walew, Dilma!).
  • O importador "daquele" vinho sempre prima em valorizar o produto. Eufemismo para cobrar além do razoável. E ninguém reclama na cara do sujeito. Passarei a fazer isso rotineiramene, agora.
  • O produtor vende o vinho dele mais caro para o exterior do que em seu país (a mentira predileta de 11 entre 10 importadores picaretas quando perguntados sobre diferenças de preço flagrantes nos preços daqui).
  • O importador sempre atua como moderador do mercado, batalhando estoica e desinteressadamente por um preço sugerido junto a todos os seus distribuidores e revendedores (lojistas em geral).
   O perigo mora nesse último ponto. Muitas pessoas talvez nunca tenham ouvido esse tipo de diálogo, que fica um pouco mais restrito às negociações entre importador/representante e lojista. Como mantenho contato com alguns lojistas, já presenciei situações como essa mais de uma vez. Faz parte da conversa mole de valorizar o produto.

Acrescentando fatos aos fatos

Estava procurando algum vinho que poderia dar-me de aniversário, e pensei que o Quinta da Leda seria uma boa escolha: só havia bebido uma vez, com boas lembranças, e o sr. Idinir, da Merceria 3M, tinha o produto a pronta entrega. O chato é que tal rótulo pertence à Zahil, importadora que não está lá muito bem colocada no ranking de margem de lucro de importadoras que o valoroso Oscar Daudt promove em seu sítio Enoventos. Veja aqui. Fui no Wine-Searcher na esperança de que pudesse encontrar alguma surpresa. O leitor decide.
Peço na Zahil/Mercearia 3M: R$ 398,00.
Preço médio encontrado na Wine-Searcher: R$ 118,00 (veja abaixo).
Com o "dóla" oficial a R$ 2,61 do dia em que escrevi estas linhas. Por aproximação dá até para falar que está 4 vezes mais caro do que lá fora. Bem, eu já estava no Wine-Searcher mesmo... e o preço no resto do Brasil?
Ei, tirem a mão do meu bolso! Puliça! Puliça! (sic! risos!)

   Mas todo vinho-maníaco (não que eu seja um...) tem suas cartas escondidas na manga. Wine-Searcher é bom, mas não é tudo. Se você já estava indignado, tolinho leitor, veja mais esta:
O mesmo vinho por R$ 249,99!

   Não  tenho como provar (a menos dos meus e-mails trocados com essa loja...), mas estava R$ 199,00 em outubro. É claro, as lojas brasileiras citadas pelo Wine-Searcher poderiam ter subido seus preços recentemente, por causa da alta do "dóla". Sem divagar mais, fiquemos com os dados que temos em mãos.

O diálogo devastador

   Armado desses dados, fui até a Mercearia 3M. O sr. Idinir, proprietário, é um entusiasta do vinho. Costuma praticar margens razoáveis; concede descontos a clientes assíduos de sua loja; repassa qualquer condição melhor que consiga sem pestanejar. Um exemplo: quando comentou em certo evento estar vendendo um vinho a preço de custo para seus clientes preferenciais, sugeriu olharmos o custo lá fora. No site Garrafeira Nacional (português), R$ 180,00 (sem IVA); em sua loja, R$ 300,00. Todas a garrafas do evento sumiram (venda imediata!). Onde ele ganhou?  Imagino que na divulgação da marca, e no lote seguinte, porque também não sobrou nenhuma garrafa e o vinho estava sendo vendido com margem de modestos 25%(!). Ao diálogo:
   - Idinir, eu estava de olho nesse Quinta da Leda... o que você pode fazer nele? Capricha, que penso em me dar de aniversário.
   - Ôpa... então deixa ver... R$ 330,00. Preço cam-pe-ão.
   Abreviando, mostrei os preços do Wine-Searcher. Ele ficou amarelo.
   - Não é possível. Venha - puxou-me a seu escritório, tirou o funcionário do computador e digitou. Mostrou-me a tela: - Preço de custo, R$ X (xis). Era praticamente igual ao preço de venda praticado pelo Rei dos Whiskys. E atalhou: - Eu sou distribuidor da importadora. Ninguém poderia fazer um preço melhor que o meu...
   - E o que você me diz deste aqui? - mostrei o preço da Kanguru, R$ 249,99.
   - Minha Nossa Senhora... - ele combaliu de vez.

Novamente, juntando mais fatos aos fatos

   O sr. Idinir comentou que às vezes o lojista pode ter desconto geral na compra e jogar essa "gordura" no desconto de determinado produto. Tá. Fui para casa e coloquei minha roupa de travesti de araponga: boné com tapa-orelhas virado na testa, sobretudo xadrez, lente de aumento e cachimbo (apagado). Chamei minha Pit Bull para fazer as vezes de sabujo e voltei para a Mega Adega. Fiz uma compra simulada lá e na Zahil. Tenho os arquivos completos, mas vou destacar apenas as principais diferenças:

Callia Alta Shiraz/Cabernet Sauvignon
Zahil: R$ 31,00
Mega Adega Kanguru: R$ 19,00

Salentein Reserve Chardonnay
Zahil: R$ 78,00
Mega Adega Kanguru: R$ 59,99

3 Fincas Crianza - Empordà
Zahil: R$ 83,00
Mega Adega Kanguru: R$ 53,99

Quinta dos Carvalhais Colheita
Zahil: R$ 123,00
Mega Adega Kanguru: R$ 89,99

Salamandra Tempranillo
Zahil: R$ 59,00
Mega Adega Kanguru: R$ 38,99

   Desnecessário dizer, mas vamos lá: os descontos excelentes apresentam-se sobre diversos produtos. Não dá mais para justificar que a Mega Adega Kanguru esteja usando desconto acumulado para promover um produto. Ainda que estivesse, alguém me explique: qual a lógica em vender um produto por algo como 20% abaixo do preço de custo? Não é um produto de R$ 10,00 (onde a perda de 10%, ou R$ 1,00, pode ser suportada), mas algo como R$ 300,00. É tolo achar que um comprador de vinho levará metade da loja porque um dos produtos está a preço muito bom. Compradores de vinho costumam não ser tão tolos, no máximo somos apenas tolos. Eles compram somente a oferta. Bem, eu compraria apenas ela, se os demais preços não estivessem razoáveis...

Após tantos e tantos fatos, uma interpretação singela e simplória

   A princípio seria difícil imaginar outra situação que não a existência de duas listas de preços. Qual seria o critério? Não sei. Então vamos cavocar nossas mentes um pouco mais e procurar alguma explicação.

   O sr. Idinir comentou-me que tem sua lista como "distribuidor", e não existe desconto maior, sequer por quantidade. Então algum arranjo existe. Será que tem gente "rachando" uma importação, com a "dona da marca" (a importadora), e na hora todos pegam o produto pelo mesmo preço? Justifica a existência de preços menores e também a insistência, por parte das imporadoras, de preços uniformes na Internet: lojistas que não participam da transação pagam o preço da importadora, que ao "forçar" preços uniformes não deixa a diferença aparecer para os lojistas que compram dela. Os compradores do lote ficam com lucros absurdos, se praticarem os mesmos preços. Quando os participantes da transação não cumprem o acordo e vendem a preços "honestos", divulgando seus preços na Internet, a importadora, que opta por margens muito maiores, fica em clara desvantagem.

   Em física diz-se que a explicação mais simples e elegante para um fenômeno geralmente está correta. No romance policial tem qualquer coisa assim: "quando eliminadas todas as explicações, a que fica, por mais improvável, é a solução do caso".

   Segundo o sr. Idinir, o que as importadoras oferecem aos distribuidores e parceiros é uma "sugestão" de prática de preços que não fiquem abaixo do preço do site da própria importadora. Ele é "livre" para praticar os preços que desejar em sua loja, mas não no site. Ah, bom! Que ótimo saber que estamos em um país livre e democrático! E é por isso que várias vezes encontro lá na Mercearia 3M vinhos a preços menores que nos sites.

   Mas ei... essa estória de preços uniformes na Internet também não configura crime de cartel? E é cometido assim, na cara dura? É isso o que nos oferecem (vai sem provas: a prática é disseminada entre as importadoras) pelos nossos suados tostões? Alguma alma cristã pode fazer com que eu veja esse expediente como algo benéfico para o consumidor?

  Como consumidor consciente, anuncio minha decisão: não compro mais de importadoras que praticam altas margens de preços. Acabou. Fine. Fin. No more. Não deixo de beber seus vinhos - quando convidado ou participando de eventos. Minha política é contra os preços, e não contra os vinhos. Quem tomar vergonha na cara ter-me-á como cliente.

Chega por hora.
Hei de oferecer mais algumas reflexões sobre o tema para o leitor que ousar voltar por aqui.

4 comments:

  1. Carlos, gostei de saber que tenho um aliado nessa luta por preços de vinhos mais justos. Parabéns pela matéria.

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  2. Oscar, receber o apoio de alguém que sempre batalhou por um mercado mais justo é muito animador. Obrigado pela visita.
    Carlos

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  3. Carlos, os árabes precificam os produtos pela valorização que é dada pelo comprador; é como procedem nos souks, sempre testando limites. Não são só eles os vilões da história, os consumidores tem de se defender, comprando de quem precisa vender. Abraço.

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  4. Rafael, mais uma reflexão que vem ajudar na discussão. Muito obrigado!
    Eu concordo com o seu ponto de vista, com uma ressalva: a nossa cultura não é espelhada na riquíssima cultura árabe, que muito nos legou desde a Idade Média. Os "formadores de opinião", de todos os jornais, de todas as tendências, sempre destacaram a "pacificidade bovina" da nossa gente. Outra diferença aguda é que, nessa outra cultura, o sujeito que começa a fazer lambança em seu cargo político corre sério risco de começar a sofrer de "plumbum coronarium", chumbo nas coronárias, ou no coração, e não necessariamente por ingestão... (risos!).
    Abraço, e obrigado,
    Carlos

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