Thursday, May 7, 2020

Quando o vinho é Babel

Introito

   Comecemos a falar da inesperada Babel deste título temendo a célebre frase
De onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo
do Barão de Itararé.

Assim, espremerei os neurônios na esperança (rs) de tirar alguma informação útil para o leitor e depois, com a ajuda das Ninfas do Tejo - e sem a menor vergonha em plagiar Camões -, fazer a conexão entre o título e o vinho.
Fonte: Wikipedia.
   A Torre de Babel é um mito descrito no livro do Gênesis (11:1-9).  Os temas bíblicos - e Gênesis não foge à regra - sempre foram fonte de inspiração para todos os ramos da arte. Um dos primeiros a retratá-lo foi a pintura. Dentre tantas manifestações, podemos destacar obras-primas como A Torre de Babel, por Pieter Bruegel (o pai), e A Criação de Adão, na Capela Sistina, por Michelangelo. Na literatura, é óbvia a lembrança de A Biblioteca de Babel, de Borges. Mas o leitor que desejar conhecer uma abordagem mais nova e muito original, deve ler A Torre da Babilônia, de Ted Chiang. Integrante de História da Sua Vida e Outros Contos (Intrínseca), narra a estória de um minerador que chega à torre quando a construção está próxima de seu final. Tento atingido a abóbada celeste, sua missão é começar a cavá-la para buscar... o que estiver lá! O livro apresenta, de quebra, o conto-título História da Sua Vida que inspirou o filme A Chegada. Infelizmente o filme é linear demais, e sequer chega aos pés do conto - então leia! Todos os contos são muito bons. Chiang é um autor muito pouco prolífico, mas o que sai de sua pena costuma ter excelente qualidade. Não perca; não estou me repetindo; estou reforçando... Na história em quadrinhos, impossível deixar de citar A Torre, parte de Les Cités Obscures, de François Schuiten e Benoît Peeters. Entre os livros (e HQ) citados e os vinhos, se o leitor puder, fique com os dois. Se não puder, os livros são a escolha imediata, é claro... vinhos à altura dessas obras custariam 'milhares' em qualquer câmbio como 'real', 'dóla', euro ou libra; os livros, só umas poucas moedas...

Vinhos e Babel

   Acontece que rolou uma noite com exemplares da África (do Sul, onde fala-se inglês, dentre outros), Espanha, Itália e França. Taí o porque da Babel... A presença africana em nosso país tem algo de profundamente triste pela forma como aconteceu. Um exemplo do quão trágico foi a escravidão é descrito por Gaiman em Deuses Americanos. Machado também denunciou a degradação da escravidão. Mas o fez com o pudor de sua época. Gaiman o faz com o (des)pudor da nossa. Então, já adianto: que o leitor de estômago mais frágil não leia. O começo do livro já é marcante. Depois só faz piorar, justamente com abordagens como a da escravidão. É um ótimo livro. Não sei se a mini-série tá fazendo sucesso. Não é enredo para tando... Voltando, as influências dessa cultura em nosso povo são marcantes: música, folclore, dança... e a beleza da mulher africana é inefável no cenário do século XXI tanto quanto o será nos séculos vindouros - as gerações futuras concordarão comigo. Espanha e Itália são etnias muito presentes em nossa cultura. Os franceses, menos, mas ninguém discorda de sua influência até o primeiro quarto do século passado.
   Aos atores, então.
   Paul Sauer 2008, produzido pela Kanonkop Estate Wine, que é considerado o melhor produtor Sul-africano. Conheça O Verbo (imprecações deste Enochato ao establishment) na próxima seção, Perguntas que não se calam. Por enquanto, o vinho. É um corte tipicamente bordalês, 69% Cabernet Sauvignon, 22% Cabernet Franc e 9% Merlot. Tem 13.5% de álcool. Foi levado pelo Flávio Vinhobão. Boa fruta, boa acidez, boa presença na boa, é escola bordalesa bem representada no além-mar. A pergunta é por que não bate um Don Melchor (cito esse por ter sido o ícone chileno que mais bebi safras diferentes. Poderia comparar também com o Errazuriz Don Maximiano Founder's Reserve, o Santa Rita Casa Real ou o Tarapacá Milenium, dentre outros). A safra 2008 de Paul Sauer ainda é uma das mais fracas, segundo o sítio do produtor. Não conheço muito dos vinhos sul-africanos. Parece que Kanonkop é melhor produtor 'tipo assim'... disparado. Mas apesar de existirem outros bons representantes, parece que falta ao país maior constância em qualidade. E mais produtores de destaque. Se pagassem um James Sucks da vida, e encomendassem uns 'notões', talvez pudessem ser mais respeitados. Enquanto forem mais ou menos honestos e inocentes (como parecem), ficarão nessa espécie de limbo. Nós, consumidores, precisamos dar-lhes mais chances, deixando de lado nossas 'certezas' tão absolutas... Mas também precisamos de melhores opções, principalmente de importadores.
   Vall Llach 2000 foi produzido no Priorat, por sua vez localizado na Catalunha. Seu sítio é bem organizado, mas não traz maiores informações sobre safras mais antigas. Classicamente é um corte Carinena e Garnacha. Mesmo com 20 anos nas costas exibiu fruta bem presente, algo de chocolate - ou café... - com boa acidez e boca muito agradável. Os avaliadores deram 'notões' - tipo 96 ou 98 - para essa safra. Não o James Sucks - não teria comprado (rs). Pedi o celular do Jacimon e escrevi um número, que mostrei só para ele. Virei para o Flávio e perguntei que nota ele daria para o vinho. Ele pensou um pouco antes de responder:
   - Daria uns 93...
   Na outra ponta, o Jaci soltou uma risada. O número do Flávio bateu com o meu. Ter batido assim, tão na lata, até a quarta casa decimal - rs - foi uma clara coincidência. Mas mostra que ambos estamos 'algo sintonizados' na qualidade de um vinho. E convenhamos, entre esses avaliadores e nós, sou mais nós...certo, Flavitxo?
   O Brunello di Montalcino 2010 da Mocalli foi bem recebido. É um Brunello mais moderno, no meu parco entender. Não tem no buquê aquela 'água de riacho depois da chuva' que encontrei algumas vezes em exemplares mais antigos. Mas é um bom vinho. 100% Sangiovese, tinha boa fruta, bom corpo, boa acidez, bom final... felicidade engarrafada, como costumo dizer. Seu Rosso já é muito bom, a um preço relativamente acessível. Comprado no lugar certo - no importador - há bastante tempo, deixou todos felizes. Não lembro-me o preço da época. Hoje, uns R$ 400,00. O Rosso, R$ 150,00. Na época da compra, o preço estava melhor. O leitor mais frequente destas páginas já sabe: wine-searcher é a fonte para dizer se a compra é boa ou não. Claro, levando-se em conta as variáveis - preço atual do dóla (sic), talvez um pouco alto, qualidade da safra, etc.
 
   Château Pradeaux 2007 veio andando desde Bandol, uma minúscula apelação da Provença, mais ou menos entre a Côte d'Azur e Marselha, a principal cidade da região. Fica ao lado de Toulon, para quem conhece bem... Seus vinhos à base principalmente de Mourvèdre e Grenache são respeitados pela longevidade. Portanto esse 2007 era... um 'moço'. E ficou claro que era mesmo. Bons taninos, boa fruta e bela acidez, atestavam que o vinho tinha muito tempo para frente, embora estivesse bom para beber. Flávio chamou atenção para seu aspecto metálico, e tinha razão: mineralidade de fazer inveja e escola (rs). Bem, o vinhedo está com a família Portalis desde... meros 1752... Passou por altos e baixos, foi parcialmente destruído pela phylloxera, para então sim, serviço completo, ser completamente devastado pelos alemães na Segunda Grande Guerra. Com persistência, recuperou a glória. Provença é, talvez, a quarta região em importância na França. Quinta?  Não sei da sua importância com comparação com o Loire. Vale mesmo que pode-se comprar seus ícones - como Pradeaux - por algo como USD 100,00, incomparavelmente muito mais barato do que os ícones da Borgonha, 1X.000,00, Bordeaux, X.000,00 e Rhone, X00,00 (mas X >> 1 neste caso). Essa região mediterrânea da França já foi conhecida como o lar do Le Vin de Merde (vinho de merda, literalmente). O Languedoc, vizinho de Bandol, era conhecida pelos péssimos vinhos, até há uns 30 anos. Nem por isso deixava de ser o lar de produtores sérios. Mas a má fama da região espantava os consumidores. Até que um desses produtores honestos colocou o fatídico nome em seu vinho. E funcionou como um marketing inesperado. Muito esforço foi feito depois, e hoje o Languedoc começa a ter vinhos respeitáveis. Veja essa postagem, já antiga... Mas voltando... Château Pradeaux é outro exemplo de felicidade engarrafada. Precisa de tempo respirando - umas 4 horas. Para mim foi o vinho da noite. Notemos que custa bem mais que o Brunello, o mesmo que o Vall Llach e muito mais que o Paul Sauer. Pela faixa de preço de cada um, não houve demérito para ninguém (preço 'lá'). Gostei pelo estilo diferente mas surpreendente, pela complexidade, boca, nariz, final... Bilbo Baggins já dizia (clique), uma noite memorável... e estava corretíssimo.
 

Perguntas que não se calam

 1) Por que - se é que - Paul Sauer 2008 não bate um Don Melchor? Falta de publicidade? Talvez. Outro problema é o preço. Exemplares de Don Melchor em S. Carlos custam menos do que Paul Sauer no importador. Sem saber o que tem em mãos, o consumidor olha e pensa: pelo menos os chilenos são nossos fregueses no futebol... Se nos esquecermos do preço e colocar um e outro lado a lado, complica. Kanonkop domina um pequeno 'detalhe' ao qual sempre me refiro: a acidez, que é bem presente em Paul Sauer mas falta a vários outros sul-americanos. E, quando comparamos preço a preço... na África, Paul Sauer custa em média USD 32,00, enquanto Don Melchor no Chile começa custando USD 80,00 (em lugar desconhecido para mim), atingindo os usuais USD 130,00 nos lugares mais comuns.

   2) O leitor que seguiu o vínculo daquela degustação antiga, de título um tanto viciado, Chileno bate franceses em degustação às cegas!, leu o comentário sobre o Paul Sauer, onde cito que ele bateria ícones chilenos, e depois notou que gostei mais do Pradeaux, pode então perguntar:
   - E como ficaria o Pradeaux face a esses mesmos ícones?
   Ao que respondo:
   - Vixe, aí é surra de paulada 😔.
   Preciso concordar que "puxar pela memória" é, para mim, complicado. O reconhecimento reside no fato de que não sou bom nisso, mas defendo que pessoas mais competentes possam fazê-lo. E que não bebi safras mais recentes desses ícones. As últimas safras foram em torno de 2005 e 2006, bebidas em 2013, 2014. Agora... a acidez desses vinhos é de 'baixa' a 'muito-baixa'. No vínculo mencionado, vemos o segundo vinho da Concha y Toro (o Terrunyo) ser destroçado por um vinho "comum" do Languedoc, a terra do vinho de merda, enquanto Bandol é a denominação mais séria da região, e Pradeaux um de seus clássicos representantes. Tá, tá, o Chateau Camplazens Reserve vem de La Clape, uma das regiões com denominação no Languedoc, e é um pouco melhor do que a média. Isso, e bateu o segundo vinho da CyT, custando no país de origem (França) a metade do preço de Terrunyo no Chile. Tá percebendo onde quero chegar? É só mais uma forma de dizer que os vinhos sul-americanos já não são competitivos como eram há tempos. Os chilenos estão achando que sabe jogar futebol e fazer vinho, enquanto os argentinos acreditam que Maradona foi melhor que Pelé. É tudo tão docemente risível...

   3) Por qual motivo as safras que chegam ao Brasil, via de regra, são as piores? Não basta custar uma exorbitância, ainda 'precisam' ser as piores? É claro, alguns vinhos muito tradicionais (portugueses, chilenos, argentinos, italianos) estão aqui quase sempre. Quero dizer, em todas as safras. Mas dê um passo mais fundo - Bordeaux, Rhone, Borgonha - e depois me diga. Claro que alguma coisa de boa safra chega, mas uma relação 'o que chega' versus 'o que falta' é descomunal.
   É um assunto que discuti outro dia com o Flávio. A conclusão foi que nossos bebedores "orelhudos" pouco sabem do que estão bebendo, o que abre a janela para que muitos desovem por aqui suas safras menos importantes. Nossos importadores parecem ávidos por comprar uma safra inferior por... "deiz dolá" (sic) mais barato, e aumentar ainda mais suas margens. Isso tem sido comum envolvendo produtores de  Africa do Sul, Austrália e Nova Zelândia, e, 'desde sempre', Bordaux. Veja o que tem no mercado de safras 2004, 2008 e 2011. Não é que sejam safras 'desgraçadas'... é que são as menos valorizadas do início do século. Isso apenas torna os preços aqui no Brasil algo mais escorchante ainda.

   Ufa... essa postagem deu trabalho...

3 comments:

  1. E aí, Carlão?
    A sua pergunta "Por que - se é que - Paul Sauer 2008 não bate um Don Melchor?"... Na minha opinião, ele bate sim. Também bebi muitos de ambos, e sempre o Paul Sauer se mostrou superior. Mas entendo que sua pergunta seria por que as pessoas não veem que o Paul Sauer é melhor que o Don Melchor? O Paul Sauer já teve preços melhores, assim como o Don Melchor. Vou discordar um pouco de você em relação à acidez do Don Melchor. Apesar se ser menor que a do Paul Sauer, o que lhe deixa em desvantagem também em relação à longevidade, ele a tem. Bebi um 2007 há uns 6 meses e estava excelente! Para mim, um dos melhores Don Melchor que bebi. E tinha na mesa outros vinhos de muito categoria. O problema de todos eles é o preço, que para mim, é muito superior ao que deveria ser cobrado (no caso do Don Melchor, até na fonte).
    A Kanonkop faz sim grandes vinhos. O melhor que bebi deles foi um Pinotage Black Label. Foi o melhor vinho sulafricano que bebi, disparado. Mas tem outras vinícolas excelentes lá, como a Mullineux, Boekenhoutskloof (que faz um Semillon incrivel), Reyneke, Klein Constantia etc. A gente, injustamente, toma pouco vinho de lá.

    Abração,
    Flavio

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  2. A propósito, esqueci de falar sobre os vinhos do Languedoc, outros injustiçados e sub-valorizados. Tem muito vinho bom de lá, inclusive no mercado nacional, a bons preços, e a turma insiste em pagar caro em vinho chileno. Aliás, para mim, os vinhos chilenos já estão perdendo para os argentinos faz tempo. Não estou falando dos Malbecões clássicos, pesados, etc. Estou falando de produtores novos, ousados, que estão fazendo coisas muito interessantes na Argentina, inclusive brancos. Tempos atrás bebi alguns vinhos de linhas novas da Zuccardi. Tinha um Aluvional Gualtallary que estava sensacional. Nada a ver com aqueles Malbecões extraidões que a turma adora...
    Abs,
    Flavio

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    1. Don Flávio, obrigado por mais este comentário!

      Vamos lá: só experimentei esse Paul Sauer, ofertado por você. Don Melchor, alguns mais. O último, faz tempo, e foi um 2006. Já seu último Don Melchor, o 2007, lembro que foi daquela "safra histórica"... e estava bom, é? Por nada não, mas se esse não estivesse bom.. qual estaria?! E olha, minha impressão do Paul Sauer é prejudicada, porque foi só essa safra. Sim, "foi a que tinha", e já foi bom... Imagina se fosse uma safra histórica contra outra... 😣
      Também não estou pretendendo que os chilenos (sul americanos, de maneira geral) não tenham acidez. Têm. Só que baixa, na maioria das vezes. E, para quem se acostumou a ela, os demais perdem o charme...

      Quanto ao Languedoc, parece que também concordamos 100%: quem lê a postagem percebe que o título é uma brincadeira, para chamar atenção. Está lá na postagem, Terrunyo foi o segundo vinho a ser servido, e ainda assim o que mais sobrou. Os demais evaporaram. E ele levou pau justamente de um Languedoc (dentre outros). Quanto ao fato deles serem subvalorizados... bem, vamos aproveitar, porque os Rhone já estão complicados. E Rhone é só a terceira região mais importante da França... imagina os demais, Bordeaux e Borgonha...
      E vai uma controvérsia: será que os tops argentinos não seriam melhores que os chilenos... desde sempre? (apesar dos 'Malbecões clássicos') É só uma provocação. Bebi muito poucos tops argentinos, e uma vez só...
      []s,
      Carlos

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