Saturday, August 7, 2021

A pesquisa nacional e a poda de inverno nos vinhedos III

Introito

   Começamos comentando uma matéria jornalística que ovacionava a produção de vinho mineira após a conquista de medalhas em degustação internacional e explicava o motivo para seu sucesso: a poda de inverno. A consulta ao preço de alguns dos vinhos mencionados motivou estas postagens, onde algumas reflexões intermediárias foram necessárias para podermos contextualizar não apenas o preço/valor do vinho como recobrar um pouco da estória dos produtores nacionais. Vamos à conclusão.

Diversas falácias

   Precisamos desmascarar diversas falácias que nos confundem. Se o leitor não tem os dados ele pode deixar-se enganar, porque sua postura é a de 'boa fé'. Veremos o quanto se mente ou, no mínimo, se distorcem dados. 

Rico/pobre. Mas é rico ou é pobre?

   Notamos que nossa indústria vitivinícola se regozija de seus feitos quando lhe é conveniente, para chorar com o chapéu nas mãos em outros momentos. Vide a postagem passada, a respeito das 'salvaguardas' que a indústria pediu ao governo quando crescia a taxa três vezes maior do que o PIB geral. Como o leitor sente-se quando informado dessas variações de humor (sic) dos nossos valorosos produtores?

A escala

   Querem nos fazer acreditar que o vinho nacional não em escala. Uma rápida pesquisa nos leva aos seguintes dados:
  • A Vinícola Aurora concluiu a colheita de 2021 colhendo 90 milhões de quilos de uvas.
  • A Vinícola Guaspari pulou da produção de... 30 (trinta) garrafas(!) em 2008 para 50 hectares, segundo o sítio do produtor, consultado nesta semana.
  • A Vinícola Miolo declara possuir uma área de 100 hectares próprios apenas na região do Vale dos Vinhedos.
  • A Casa Valduga orgulha-se se possuir a maior cave de espumantes da América Latina, com capacidade para abrigar mais de seis milhões de garrafas.
  • A Vinícola Marchese Di Ivrea declara em seu vídeo institucional produzir 50.000 garrafas por ano.
     
   

   


Os detratores dirão que trato dos grandes produtores e esqueço-me que os pequenos, que são boutiques de vinho com produção minúscula. Respondo:
  • A Guaspari citada acima é uma das vinícolas premiadas. Tem escala.
  • Produtores como Espaço Essenza, Vinhos Maria Maria ou Vinícola Campestre, apenas para ficar nestas, não declaram suas produções ou áreas plantadas, tornando-so impossível qualquer comparação. Mas vamos apostar que essa produção é 'alguma'. Umas 1.000 garrafas? Guarde esse dado.
   Certo. A Europa toda (principais produtores, França, Itália, Espanha e Portugal) está repleta de produtores pequenos com terrenos de até meio hectare. Vejamos o caso de um produtor espanhol. A Bodegas Pujanza produz seu ícone, o Cisma, em um vinhedo de... 0,8 hectare. Toda a produção é realizada em um único barril de 1.700 litros. Entre magnuns e garrafas comuns, dá umas 1.000...Veja aí abaixo a condição das vinhas que ocupam os 0,8 hectare... cada vinha dá um ou dois cachos... será que as vinhas dos nossos produtores são centenárias, de baixa produtividade? Qual nada! Leia lá (rs), muitas começaram nos últimos 10 ou 12 anos!

   Os detratores poderão continuar dizendo que Pujanza produz outros vinhos, e alguns chegam à casa de dezenas de milhares de garrafas por safra. Sim. Mas como dito, a Europa possue milhares de produtores que sobrevivem cultivando até meio hectare. Escolhi o exemplo de Pujanza porque de fato ela produz ampla gama de vinho e então falaremos de preços.

Finalmente, os preços

   Pujanza produz uma gama relativamente variada de vinhos:
   Hado é avaliado em 12 moedas
   Finca Valdepoleo vale 20 moedas
   Pujanza Norte fica entre 46 e 53 moedas
   Pujanza Cisma (ícone da vinícola) vale lá suas 125 moedas



   Vejamos o preço de alguns vinhos nacionais premiados pela Decanter:
   Vinícola Góes Philosophia Cabernet Franc 155 moedas
   Barbara Eliodora Syrah: 167 moedas
   Guaspari Viognier Vista do Bosque: 178 moedas
   Casa Valduga Identidade Gran Corte: 192 moedas ('promo' por 153,60 moedas)
   Vinícola Ferreira Piquant Soleil Syrah: 200 moedas
   Vinícola Ferreira Arcanum da Serra Merlot: 300 moedas

   Sejamos honestos: alguns produtores oferecem seus vinhos a preços mais palatáveis:
   Amitié Pinot Noir: 66,50 moedas
   Vinícola Campestre Zanotto Sangiovese: 70 moedas
   Mas veremos que, na verdade, não são tão palatáveis assim.

   E quando o leitor pensa que o céu é o limite, fiquemos com essas pérolas da nossa 'produção':
   Guaspari Cabernet Franc: 548 moedas
   Miolo Sesmarias: 1038,52 moedas. Se pechinchar acho que sai por 1038,00... 😆

   Comparemos com os preços de alguns vinhos verdadeiramente icônicos de nível mundial:
   Barbaresco da Cantina Produttori del Barbaresco: 46 moedas
   Chateauneuf-du-Pape Chateau de Beaucastel: 97 moedas
   Brunello di Montalcino Biondi Santi (2015, 2017), é o pai da denominação Brunello: 180 moedas
   Barolo Giuseppe Mascarello e Figlio Monprivato: 227 moedas
   Vega Sicilia Unico Gran Reserva: 460 moedas
   Chateau Lafite Rothschild: 1.272 moedas. E não, não deixam por 1.270 moedas... 😠 (😂)

   Famoso (mais por força do marketing do que pela qualidade per se) desde há muito, o Miolo Lote 43 é um vinho cujo preço varia de 280 moedas (há alguns anos; hoje deveria custar bem mais) a até 200 moedas em 'promo', e atualmente está cotado a 230 moedas. É um vinho que já bebi, assim como vários da Miolo. Veja aqui. É incrível como o preço de Lote 43 oscila de tempos em tempos, provavelmente em função dos estoques - sua tiragem é enorme. Mostrando que acompanho ainda que de longe a produção nacional, outra crítica deste articulista remonta ao Decima Gemina Gran Reserva 2005 da Piagentini, a 100 moedas (em 2012! Dóla = R$ 2,20). O que escrevi do Decima, e já comentei sobre o Lote, e que são vinhos para competir com um Gran Tarapacá. Note que refiro-me ao Gran Tarapacá e não ao Tarapacá Gran Reserva, que está um degrau acima e ainda vem muita gente (sic) depois dele na escala de vinhos desse produtor. Ora, Gran Tarapacá custa no Chile 5.000 pesos, o que dá em valores internacionais 6,34 moedas. Assim, nossos pesos-pesados nacionais, na faixa de 200-300 moedas só competem com os chilenos de 6-7 moedas. E, recobrando a primeira postagem, enquanto o Brasil tem 322 menções ou medalhas no evento da Decanter, o Chile tem... 6.733! Quem será que produz vinhos melhores? Mais um argumento: todo mundo que viaja sabe muito bem; compramos em países produtores vinhos 'razoáveis' na faixa de 6-8 moedas... o que corrobora a comparação com o valor do vinho chileno no Chile.
 

Nada fica tão ruim que não possa piorar

   Voltemos à questão da poda de inverno. Seu mérito é inverter a colheita das uvas, jogando o término da maturação para uma época de menos chuvas. OK. Acontece que a colheita é apenas um - e talvez não o mais importante - fator na produção de bons frutos. Citando o Vinhos de Todo o Mundo - Guia Ilustrado Zahar (Jorge Zahar Editor, edição brasileira de 2006),
p. 51 (sobre a França), "Mais ao sul, no Vale do Rhône e no sul da França, muitas cepas brancas tendem a ser menos ácidas devido ao clima mais quente."
p. 195, verbete sobre o Piemonte: "Os Alpes moderam o sol quente do verão, e as temperaturas mais baixas resultantes preservam a acidez e aumentam a complexidade das uvas."
   A região compreendendo Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo está aproximadamente no paralelo 20. Aquele mais ou menos famoso vinho argentino que provavelmente todos bebemosalguma vez (o Latitud 34) está, isso mesmo, no paralelo 34. O extremo sul de Portugal está no paralelo 37 (norte, claro), e às vezes neva por lá. O continente europeu começa dali para cima (sic), ou seja: as temperaturas só decrescem mais para o norte. Aí vão querer me convencer de que vinhas plantadas em regiões onde as temperaturas de verão superam facilmente os 30 °C terão alguma acidez quando comparadas àquelas cultivadas em regiões com máximas de até 25 °C? É isso mesmo? Gentem (rs! sic!), o extremo sul do Rio Grande do Sul ainda está no paralelo 33... precisa desenhar? Querem desmentir que a Vitis vinifera não se adequa ao Brasil. Ora, que bobagem! É o Brasil quem não se adequa a ela...

   Portanto, não adianta nossa indústria insistir em tocar um trabalho extremamente sério nas condições continentais do país. O resultado desse trabalho extremamente sério será absolutamente ruiníssimo. Não, eu não experimentei nenhum dos vinhos do evento da Decanter. Mas com os preços desproporcionais que nos apresentam, vou canalizar meus poucos reais para vinhos nos quais realmente acredito. Continuo indo a degustações (não durante a pandemia) e experimentando principalmente nacionais e sul-americanos. Minha opinião ainda não mudou: os chilenos estão demasiadamente caros para sua qualidade. O que dizer do preço dos brasileiros? Não terei o menor problema em reformar minha opinião quando experimentar qualquer vinho nacional e avalar que é de boa qualidade. Ainda aguardo o dia em que poderei ir para o Chile, levar um vinho nacional debaixo do braço, chamar os amigos chilenos, abrir um Tarapacá Gran Reserva (agora sim, um Gran Reserva) e dizer:
   - Este vinho brasileiro custa na minha terra o mesmo preço que um Gran Reserva aqui. - E então servi-lo com orgulho. Claro, aguardo sentado.

PS: tenho as imagens de tela de tudo o que escrevi. Pela extensão da postagem, poupei o leitor de apresentá-las todas. Se algum arrivista aparecer, posso fazer uma postagem amontoando-as sem muitos comentários. Obrigado pela paciência!

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