Sunday, November 1, 2020

Revisitando o julgamento de Paris

Introito

   A Prova de Vinhos de Paris, que ficou conhecida como Julgamento de Paris, aconteceu em 1976, - parece - como forma de celebrar os 200 anos da independência norte-americana da coroa britânica. Não surpreenderia se o 'inimigo natural' desta à época, a França, fosse então a primeira nação a reconhecer esse ato. A Prova foi levada a cabo pelo inglês Steven Spurrier que - parece (rs) - era um lojista falido dedicado também a ministrar cursos de degustação para turistas, na França. Tem um filme engraçadinho, Bottle Shock - e (parece 😁) outro a caminho, sobre esse assunto. Bottle Shock teve como protagonista o impagável Alan Rickman, não por interpretar o professor Snape em Harry Potter, mas pelo papel de Alexander Dane em Galaxy Quest. Em uma cena, logo no começo, ele se queixa da posição de protagonista em uma série de ficção científica que imita Star Trek:
   Assista a ambos, se puder. Bottle Shock é no fundo (mais) uma patriotada americana, mostrando um bando de matutos descobrindo sozinhos e na sua geração o que os franceses levaram mil anos para desenvolver. Americanos são Phoda. Assim mesmo, com Ph (e "P", maiúsculo). Qualquer dia vão dizer que eles próprios descobriram a América...

O julgamento de Paris

   O julgamento de Paris foi então um evento de prova de vinhos produzidos nos dois lados do Atlântico, envolvendo vinhateiros norte-americanos e franceses, e provadores franceses. Tinha uma americana, parece 😂, e o próprio Spurrier no corpo de 11 jurados. Assim, nove eram franceses. Provaram-se diversos tintos e brancos, às cegas. Os jurados avaliaram cada vinho com notas, alguma conta foi realizada e o resultado surpreendeu a todos: os vinhos norte-americanos - tinto e branco - foram declarados os melhores do encontro. Muito se comentou a respeito. O argumento mais forte foi que os vinhos americanos podem ser consumidos mais jovens, enquanto os franceses precisam de mais tempo para desabrochar.
   Acho que nada pode ser dito quanto à honestidade intelectual dos jurados - afinal, eram quase todos franceses. Ademais, eles sabiam o que estava se passando: era um evento de provas envolvendo vinhos americanos e franceses. Eram pessoas do metiê: produtores de vinho, donos de restaurantes, colunistas de revistas especializadas. Um resumo dessas informações está aqui. A pergunta que não quer calar é: como essas pessoas não perceberam 'de cara' quem era quem? Notem que estou avalizando a honestidade intelectual de todos eles. Poderiam até ter escolhido os vinhos americanos e comentar, decepcionados consigo próprios, ou cheios de surpresa, que os americanos tinham vencido. Antes da contagem dos votos. Não consta que tenha sido assim. Então, novamente: o que aconteceu?
   Até à luz da última postagem, quando comentei matéria 'jornalística' a aventar sobre toda essa estória de avaliações e percepções sobre vinho ser uma fraude, precisamos contextualizar alguns pontos.
  1. Os vinhos produzidos nos anos 70 eram muito diferentes dos de hoje em dia. A proposta do Émile Peynaud de controlar a temperatura da fermentação ainda não era plenamente aceita.
  2. A revolução causada pela engenharia genética nos anos 90 forneceu aos vinhateiros leveduras de qualidade superior, e fez com que nos anos 2000 os vinhos atingissem uma qualidade nunca antes alcançada.
  3. Finalmente - mas não menos importante - acho que os franceses estavam em uma bolha, acreditando que sempre produziriam o melhor vinho do mundo. Eles não tinham padrão de comparação; tirando alguns vinhos estrangeiros de boa aceitação na França (Riojas, por exemplo), seu universo era restrito. E, por saber de vinhos, eles os bebiam (bebem) no tempo e em condições corretas. Algo 'novo' poderia muito bem deixá-los perdidos, perdidinhos da silva...
   A boçalidade desceu para a soberba, e deu no que deu (risos!). Nunca saberemos o que se passou exatamente. O Chateau Montrose 1970, por exemplo, pode ser encontrado. Mas mudou demais, desde então. E os vinhos norte-americanos, estes sumiram... Ao  que importa: dizer que os norte-americanos 'ganharam' importa, de verdade? Bem, para eles, importa sim (gargalhadas!). Acho que importa mesmo é se de fato eles produzem vinhos que possam ser competitivos com os franceses. Uma lista dos melhores produtores de vinho do mundo apontaria - na minha opinião, França, Itália, Espanha e Portugal, nessa ordem. Será que os EUA conseguem algum lugar entre esses produtores? Qual posição? Após a Itália? Após a Espanha? Isso eu não sei - escrevo à priori à experiência que se seguirá. O que gostaria de descobrir é se, de fato, os vinhos americanos podem encostar nos franceses. Já terá sido um grande feito. Principalmente para um país que viveu a Proibição, cuja indústria vinícola colapsou e passou décadas na estagnação, para começar a recobrar-se somente em meados da década de 1960.

Preparando um evento

   Por ocasião deste meu 56° aniversário, passei a semana toda tocando o terror para cima do Flavitxo. Dizia precisar voltar às origens, beber uns chileninhos... que havia comprado alguns Carmenères surpreendentes, e que ele deveria provar.
   - Pô, você vai estragar sua festa de aniversário - choramingava ele. Foi com andar um pouco reticente que chegou em casa, precisamente às 20:00 do dia 30 (níver é no 31). Trazia o sorriso alegre de sempre, uma panela em uma mão, um Borgonha 2009 na outra. Em sua inocência, tentava salvar o evento. Sentamo-nos para uma entrada;  Romeu e Akira não tardaram. Estávamos perto do final da entrada, cheguei para Flavitxo com uma taça. Ele mal aproxima do nariz e ergue as sobrancelhas enquanto um sorriso maior ainda aflora, ele olhando para mim:
   - Esse negócio está começando forte... - deu uma cafungada, olhou para cima e voltou-se para mim. - É nervoso! - depois aprumou-se na cadeira, deu mais uma cafungada e quando voltou era Don Flavitxo Vinhobão falando: - Tem um doce diferente... frutas, couro... tem 'camadas' - enfatizou 'camadas'. É bom, heim?!
    Deixei que ele se divertisse com o nariz, e a conversa andou mais um pouco. Quando atreveu-se a beber (rs), meus olhos já o interrogavam. Ele não demorou a responder, depois de gastar um tempo terminando o gole:
   - Na boca também tem um doce. A madeira é discreta, é bem equilibrado, e o final é marcado... rapaz, é longo...
   - Nota?
   Ele pensou um pouco: - 93.
   "Mão de vaca", pensei. Dei um tempo e fui buscar a segunda taça. Lá foi ele:
   - Ô, isso não está mole não... tem fruta explodindo aqui... também tem um doce, e mais... café, couro, madeira... - cafungou mais um vez e deu um gole. Fechou os olhos. Mastigou, mastigou, engoliu, e mastigou enquanto virava os olhos.
   - Nota?
   Ele pensou um pouco antes de responder: - Se aquele é 93... este é 94.
   "Mão de vaca" - pensei novamente.

Os atores

Cada qual com seu bifim, passamos a uma coversa mais animada e uma degustação não menos atenta. Depois de alguns goles, sem muita frescura (rs), resolvi apresentar os atores. O primeiro vinho foi um Quilceda Creek 2004 de Columbia Valley, corte 96% Cabernet Sauvignon, 3% Merlot, 1% Cabernet Franc. Nariz muito complexo... por isso fico com a análise do Flávio. E boca? Sim, o doce, a fruta, chocolate/café, especiaria. Boa acidez, boa madeira, final longo mesmo. Pelo preço, tem obrigação de sê-lo, mas cumpre o dever: felicidade engarrafada. Um vinho para 'sonhar com'. Na hora, e nos dias seguintes, porque fica na memória. O segundo foi o Chateau Montrose 2003. É um Saint Estèphe. Grand Cru Classé de Médoc, segundo vinhedo pela classificação de 1855, encarna um daqueles bordosões objeto de desejo de qualquer onófilo mais esclarecido. Nessa safra, é um corte 62% Cabernet Sauvignon, 34% Merlot, 3% Cabernet Franc and 1% Petit Verdot. O leitor já bebeu CS chilenos? Que chilenos! Esquece. Franceses, Bordeaux mesmo, tipo Grand Cru 'comum' de Saint-Émilion? Esquece também! Tudo o que vc já bebeu de Cabernet Sauvignon perde o sentido quando o assunto é um vinho desse nível. Lembra quando escrevo que vendem uma garrafa com 'vinho' escrito no rótulo, e compramos o produto por 'vinho', como se o fosse de verdade? O mesmo para esses exemplos de Cabernet Sauvignon. Se Montrose é um padrão para a CS, tudo o que bebi antes, e até hoje, estava errado. É muito delicado. Na boca, a picância que sempre denunciou essa uva para mim é bastante diferente. Está lá sim, mas de outra maneira. Mais elegante, mais sutil. Inaugura um novo padrão de 'aveludado'. Felicidade engarrafada novamente - outra vez, entrega com sobras o que seu preço diz ser a clara tarefa. Don Flavitxo deu-lhe um ponto a mais do que a Quilceda. Enquanto os avaliadores concederam 98, 99 pontos a eles, Don Flavitxo ficou com 93, 94. Justo: seu padrão está claramente acima desse pessoal, que às vezes não mede e$forço$ para divulgar avaliar um bom vinho. Não é o que importa, neste momento.

A avaliação

   Ficou muito claro: dois vinhos de ótimo nível, compatíveis em qualidade. O Akira detectou e matraqueou que ambos tinham CS desde o início. Como não está bebendo, foi gentil e cordialmente negligenciado pelo Flávio e pelo Romeu (rs). Mesmo Flávio, apesar de aventar que o primeiro fosse americano, não cravou. E, no segundo, mesmo em algum momento deixando escapar um 'Bordeaux', não descobriu o que era. Sinal de que o evento foi um divisor e águas para todos. 
   E assim chegamos ao propósito do encontro, Revisitar o 'Julgamento' de Paris sob a perpectiva de analisar a qualidade de um grande vinho norte-americano face a um grande francês. Ambos com idades próximas, boas safras, algo envelhecidos. Ambos, sem dúvida, no limiar de sua maturidade. São vinhos com uma década (Quilceda) ou mais de duas (Montrose) pela frente. Mas podem ser degustados com muito prazer agora.
   No segundo dia, Quilceda perdeu muito do doce, o que deixou-o mais balanceado. Na boca, apareceu muita mas fruta, café chocolate. Bebi com igual prazer. De fato, sobrou um porquinho de álcool - foi apontado pelo Romeu no primeiro dia. Também... 14.9%... Montrose deu uma galopada mais vigorosa para frente. Menos álcool (13%), manteve o equilíbrio. O chocolate (café? - rs) apareceu melhor. A primenta continuou sutil. Está no fim, e apesar de grandioso vai gerar uma lágrima no gole derradeiro. Não lágrima de tristeza, mas de saudades antecipadas... Montrose é um pouco mais vinho que Quilceda. O que, convenhamos, não representa o menor demérito para este segundo. Montrose é menos vinho do que vários Bordozões de primeiro vinhedo - parece(!) 😂. Tendo a acreditar.
   Não há dúvida: para quem tem a classificação como mais importantes produtores de vinho os do Velho Mundo (França, Itália, Espanha, Portugal), é preciso repensar tal ordem. A América entra nessa lista. Particularmente, acho que em quarto lugar. Não conheço tanto de espanhóis, mas apoio-me na experiência de um Sanchomartin para manter a Espanha na frente dos americanos. Experimentei uma pequena taça de Barca Velha. É muito bom. Mas... 1) Custa o dobro desses; 2) Não tem uma base tão larga de outros 'bons camaradas' a seu lado em um embate entre nações. Bem, minhas experiências com grandes espanhóis e portugueses de fato são poucas, assim como com bons americanos. Refugio-me na proposta e apresentação deste blog, "Resmungos de um deficiente nasal que sabe pouco para iniciantes que sabem menos". Pelo que experimentei até hoje, o veredito é esse. Não quer ser ser final (gargalhadas!), nem tão preciso. Ainda abordo a questão que surgiu outro dia em uma roda: até quanto ($) justifica-se o valor de um vinho? De outra maneira: até quanto o bebedor desembolsa e chega a um limiar onde a percepção da qualidade já não é tão evidente? Ambos os atores desta postagem custam um pouco mais de USD 200,00. Nesse patamar, ainda encontramos um salto de qualidade evidente, e marcante. Acima disso, não sei dizer. Tive muito poucas experiências nesse espaço amostral...

6 comments:

  1. Big Charles,

    Caramba! Fiz o comentário e quando ia depositar, ele sumiu! Vamos lá de novo... E fazendo um copy no final para qualquer emergência...rsrs.

    Bela postagem. Parabéns! Simplesmente, não há o que tirar, nem por. Descrição muito legal do evento (por que não foi apenas uma reunião de amigos: Foi um evento! rsrs), dos vinhos etc.
    A propósito: Que grandes vinhos, hein? E você ainda se deu ao luxo de omitir um belo Chablis 1er Cru e um Sauternes, que corou a bela noite?
    Obrigado pela experiência. Foi excelente. E mostrou mais uma vez que, às cegas, o negócio fica difícil.

    Abração e mais uma vez, parabéns pelo aniversário.

    Flavitz

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    1. Olá Don Flavitxo.
      Achei melhor dividir as estórias, uma com ênfase no 'julgamento' e outra focará nos complementos.
      Quando os vinhos saem do comprimento de onda a que estamos acostumados, fica mesmo uma 'missão-quase-impossível' desvendá-los às cegas. Por isso resolvi fazer a primeira rodada e depois mostrar quem eram. Foi acertado.

      []s, e até aquele seu Pommard...

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    2. Vamos tomar logo o Pommard, senão estraga...rsrsrs

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    3. Acho que por enquanto ele enfeita muito bem minha prateleira... ☺

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    4. Vem com essa, não! Vamos tomar logo! Safado...rs

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    5. Marque dia, mês e hora. Eu marco a gestão do Senhor.

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