Friday, March 19, 2021

O desencontro do bacalhau com a Bacalhôa

Introito

   Corriam os últimos anos da primeira década do século. Éramos felizes e não sabíamos. Éramos ricos, e não sabíamos! Achava-me o embaixador do vinho chileno no brazio (seus ícones custavam USD 50,00, no frixópi de saída de Santiago); Lula, o Ladro, ensaiava passar o bastão para aquela desentendida cujo nome recuso-me a pronunciar. Um dóla valia, vai, R$ 1,80. O IOF era 0,40% (agora, 6,38%, e agradeça a 'ela'). Na Mercearia 3M, o fundo da loja, outrora um amontoado de brinquedinhos a R$ 1,99, florescia em vinhos. Eram tempos de efervescência: sextas-feiras animadas em happy hour das 18:00 às 20: e pouco invariavelmente terminavam com vários alegres consumidores levando um vinho melhor para beber com um filé à Don Corleone no Chiao Bello. O Idinir trazia, dentre outros quitutes, um excelente bolinho de bacalhau. E ainda os primeiros exemplares - Meia Pipa, Tinto da Ânfora, Má Partilha - de Bacalhôa. Já havia apreciado os bolinhos de bacalhau com o bom Vinha da Defesa Branco, da Esporão. Era uma harmonização maravilhosa; lembro-me do dia em que cheguei em casa num sábado com um pacote de bolinhos e uma garrafa de Defesa; enquanto preparava o vinho e passava uma água nas taças, minha ex-esposa acendia o fogão e ficamos ali por algum tempo entre fritar os bolinhos dois a dois, consumi-los ao tilintar das taças apreciando a harmonização e conversando sobre... coisas... 
   Um dia o Idinir trouxe um Quinta da Bacalhôa branco. Era um tanto caro, precisava (era $melhor$...) ser consumido em confraria. Para mim, soou como piada pronta. Cheguei no pé do ouvido para o Idinir e comentei: 
   - Rapá (sic), faça um mini-evento de sexta-feira sob o título de "Encontro do Bacalhau com a Bacalhôa", e sirva o Bacalhôa branco com o bacalhau... 
   Ele ficou de pensar na ideia, e eu aguardei o evento até quando, em viagens para o Chile, comecei a encontrar alguns Bacalhôas no frixópi brasileiro a bom preço. Não tinha o Quinta da Bacalhôa branco, mas tinham o tinto e o Palácio da Bacalhôa, seu ícone, dos quais comprei várias garrafas ao longo de alguns anos. Assim como meus exemplares de Crasto e Esporão vão chegando ao final, finda-se minha última garrafa de Bacalhôa. São bons vinhos e recomendo, mas acho que alguns ficaram muito caros em nosso mercado. Boas opções para trazer de fora. Na linha de 'não repetir vinhos', provavelmente não os comprarei mais. Mas beberei com muito prazer se alguém servir algum! Observe o leitor mais desatento que é apenas uma opção de consumo. Já experimentei diversos, e ao longo do tempo. A minha fidelidade, devo-a a quem possa amar, e ao vinho. Não ao produtor, ou ao lojista. O lojista ainda pode adequar-se ao meu gosto. O produtor, reconheço, e mais difícil. Mas Bacalhôa tem meu completo aval para os novos bebedores. Continuo amigo deles, produtor e lojista, mas 'fidelidade' não é uma palavra posta nessa mesa...

Palácio da Bacalhôa 2007

   Estou ficando relapso. Tendo escrito sobre o produtor, o leitor pode procurar na barrinha aí ao lado algumas das entradas e encontrar informações sobre seus vinhos e sobre ele próprio. Palácio da Bacalhôa é um vinho que, para minha sorte e felicidade, bebi diversas garrafas ao longo do tempo. Teve um fato engraçado. O orientador do Akira vinha do exterior, e este mandou-lhe uma lista de vinhos para comprar no frixópi, já que ele nada pensava em trazer de lá. Da lista cuidadosamente escolhida pelo Akira só tinha um vinho, e o Glauco não teve a menor dúvida: trouxe-lhe uma caixa completa. Certo que a felicidade de ter uma caixa de Palácio foi completa, mas durante certo tempo, sentados em um restaurante, Don Flavitxo e eu víamos de longe Akira chegar com uma garrafa de Palácio debaixo de braço. Acho que bebemos meia dúzia em um ano. Claro, ninguém reclamou, mas depois da quarta já comentávamos entre nós: - Quer apostar que vinho o Akira vai trazer? O outro não pagava a aposta...
   A safra 2007 em Portugal foi uma das melhores deste século que ainda engatinha, superada apenas pela 2011. Um bom motivo para apostar na longevidade de alguns de seus vinhos, e, chegada a hora, beber aquelas garrafas estrategicamente guardadas por uma década em nossas adegas. Já comentei: guardei muitos dos meus vinhos por mais de 10 anos. É chegada a hora de ir desfrutando de um aqui e outro ali; soltar a mão com tranquilidade, sem confundir paciência com avareza, porque nasci para Cronópio, não para Scrooge... 

Poderia fizer que Palácio da Bacalhôa 'é o meu vinho'. No sentido de que é estilo que vinho que aprecio mais. Deficiente nasal que sou - a deficiência começou em eu menino, brindando-me um final de infância, adolescência e vida adulta sem muitos odores, o que definitivamente prejudicou-me como apreciador de vinhos e tornou-me o enochato de hoje - gosto de um vinho com mais extração, mais marcado no nariz, e isso 'chama' um bom corpo para acompanhar o nariz. Não que eu não aprecie um vinho mais sútil, mas fico na loteria: se o nariz 'funciona', posso apreciá-lo melhor. Se falha... perda total... Mas voltando ao estilo mais pegado, Palácio da Bacalhôa está pronto para o consumo, mas aguenta mais tempo em garrafa. Prova é o nariz com fruta vermelha intensa, tabaco/couro e chocolate. É um nariz com boa complexidade, e ela é bem evidente: não dá pra confundir só o café/chocolate que adoro misturar sem saber qual. Está além. Boca com o agradável traço doce dos vinhos portugueses, apesar dos 14% de arco (e mais não sei quantos % de frexa (🙈)) muito bem harmonizados - o álcool está muito contido. Os taninos amadureceram, integram-se ao conjunto bom elegância. A acidez está bem presente, e ninguém - álcool, tanino, acidez e açúcar - briga pelo estrelato. É um vinho que, nessa idade, enche a boca: encorpado, elegante, deixa um travo de chocolate e permanece por bom tempo, enquanto salivamos e lembramo-nos do quanto a vida pode ser bela. Um excelente exemplo de felicidade engarrafada. Não costumo dar nota, mas este seria um 93 Pontos Enocháticos, fácil fácil... Se ainda tivesse uma garrafa, seria 0,0001% mais feliz. O que é bastante, já que o homem não nasceu para alcançar essa graça. Era um vinho de USD 50,00 no frixópi nos idos de '10, o que dava uns R$ 90,00. Atualmente está em nosso mercado algo entre R$ 480,00 e R$ 680,00. O leitor atento notou que o dóla apenas triplicou, R$ 90 x 3 = R$ 270,00. Certo, comprado em frixópi - que nunca teve lá bons preços - daria uns R$ 400,00 com impostos. Na melhor oferta, ainda está 20% mais caro. Na melhor oferta... Se quase 500tão parece-lhe uma fortuna - para mim não parece, para mim, é!, isso é só mais uma confirmação do quanto empobrecemos de uns tempos para cá. oPTou e Ficou PuTo? Eu também. Tentou mudar e deu com os burros na água? Eu também. Não persista no erro, assim como não insisto no vinho. Deixe essa vaga para os burros. E, claro, para os energúmenos. Estes tentarão te vender um vinho a preço muito além do que vale. É tudo tranqueira do mesmo balaio. Deixe-o vazio na beira do rio.

Post scriptum

   No final, acabei não 'matando' o vinho no almoço seguinte; ficou para a noite. Sobrou uma boa medida para minha taça padrão (não ISO...), e mais um tanto para a segunda rodada. O vinho não evoluiu, e também não decaiu significativamente. Continuou com bom nariz, boca equilibrada e marcada. A permanência recordou-me da noite anterior. Nada a reclamar, pelo contrário: tudo a exaltar. Um bom vinho sobrevive bem de um dia para o outro.

4 comments:

  1. Bela postagem, Big Charles! Além dos comentários pertinentes e divertidos, o vinho é realmente ótimo. Sem digo que é um bordeaux português, de muita qualidade. Pena que tenha chegado a preços tão altos. Aliás, tá tudo assim, né? Uma pena. Vamos então garimpando aqui e alí em busca de algo que caiba em nossos bolsos e paladares. Mas imagino que este Palácio 2007 estava mesmo top. Ainda tenho alguns portugas 2007. Dia desses, abri um Vallado Reserva 2007, que já tivemos o prazer de apreciar. E estava uma delícia! Outro que também chegou a preços muito altos.
    Abs
    Flavitz

    ReplyDelete
  2. Belo texto Carlão, alinhavou bem a estória do bacalhau no Palácio.. só queria colocar que também terminei minha cota de Palácios, mas não de bacalhau, e me lembrei que comprei o primeiro deles nos longinquos tempos do Empório primeiro do Brigante, Mercadão. Cmprei ali por 199 pilas. Lembro porque me remete as liquidações, que na verdade não era. Mas acho que já fazem uns 15 anos. Será que está caro 400 nos dias de hoje? De qualquer forma, sou da escola de não repetir rótulos; afinal, temos tantos aí.. Boa degustação do dedinho que sobrou. Evoluiu?

    ReplyDelete
    Replies
    1. Don Flavitz, obrigado pelos comentários.
      Palácio está R$ 459,90 no vinhobr. Acho que 'promo' a R$ 199,00, há 15 anos (1 dóla = R$ 1.7, aprox), era apenas um estupro. Hoje só está caro, um pouco em função do que tenho comentado: empobrecemos.
      Precisamos encarar isso e reduzir a qualidade do que compramos, ou apertar mais ainda a busca por boas alternativas. Durante o ano passado comprei vários Korem, bebi um só, esse comprado com a confraria. Enquanto Enoeventos não volta com mais portugas (ainda tem Solstício a preço antigo!), a opção que se oferece são os espanhóizinhos (sic) Capellanes e Juan Gil que você mesmo recomendou. Tem mais algum espanhol lá, que não conheço.
      Uma pena Vallado ter disparado. Comprei algumas garrafas a bom preço no Idinir, há tempos (8 anos, quem sabe). Bem, vamos ao próximo...
      Pretendo acabar com o que sobrou do Palácio na hora do almoço, vejamos se mudou.

      Delete
    2. Advertido por Don Flavitz, parece que o segundo texto não é dele - embora ambos se pareçam um pouco! Don Flavitxo reportou-me que às vezes a plataforma 'dá pau', e ele não tem certeza se o texto 'foi', então escreve novamente. Daí minha resposta que, apesar de tudo, cobre os dois comentários. Obrigado ao comentador anônimo. Aliás, nem almocei ainda... preciso ir!

      Delete