Sunday, January 1, 2023

Última postagem do ano

Introito

Durante a semana estive pensando no tema para a postagem de final de ano. Tinha vários assuntos selecionados, e procurava por um argumento aglutinador desses pensamentos - o que sempre tento com falhas tão glamorosas quanto frequentes, como bem sabe o inexistente leitor habitual do espaço. Eis que o Jacimon veio em meu socorro, compartilhando trecho de sua leitura, prática ministrada com maior frequência antigamente, devo protestar. O autor é mestre em ciências políticas, algo para o qual prestamos muito pouca atenção por aqui. Vale a pena saber o mínimo sobre ele, veja no vínculo. A obra é Os Engenheiros do Caos (Giuliano Da Empoli); o grifo abaixo é do Jacimon e o contexto, claro, não diz respeito a algum caso específico do Brasil, mas é emblemático para destrinchar nossa estória recente.

Essa partida ainda não tomou o lugar do jogo político tradicional, mas está em vias de assumir uma importância capital e já começou a impactar visivelmente nossa sociedade.

No velho sistema, cada líder político só dispunha de instrumentos bastante limitados para segmentar seus eleitores. Ele podia enviar mensagens específicas a certas categorias de base – sindicatos, pequenos empresários e donas de casa –, mas precisava fazê-lo publicamente. Quem quisesse criar um consenso majoritário – e não só de nicho – tinha que se dirigir ao eleitor médio com mensagens moderadas, em torno das quais poderia convergir o maior número possível de pessoas.

O jogo democrático tradicional tinha, portanto, uma tendência centrípeta: ganhava aquele que conseguisse ocupar o centro da arena política.

O mundo dos físicos de dados funciona de maneira diferente. Aqui, para criar consenso, o fato de lançar um projeto político capaz de convencer todo mundo conta muito menos, visto que – como profetizava Michel Foucault há quatro décadas – o povo, massa compacta, foi abolido em benefício de uma reunião de indivíduos separados, cada um passível de ser seguido em seus menores detalhes.

 Numa situação assim, o objetivo passa a ser identificar os temas que contam para cada um, e em seguida explorá-lo através de uma campanha de comunicação individualizada. A ciência dos físicos de dados permite que campanhas contraditórias coexistam em paz, sem nunca se encontrarem, até o momento do voto. No novo mundo, portanto, a política é centrífuga. Não se trata mais de unir eleitores em torno do denominador comum, mas, ao contrário, de inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los – mesmo à revelia deles. As inevitáveis contradições contidas nas mensagens enviadas a uns e a outros continuarão, de qualquer forma, invisíveis aos olhos das mídias e do público geral.

O raciocínio vale tanto para as comunidades mais inofensivas, os colecionadores de selos ou os amantes do kitesurf , quanto para as mais perigosas: os fanáticos religiosos e os membros da Ku-Klux-Klan. Se o movimento convergente da velha política marginalizava os extremistas, a lógica centrífuga da política dos físicos os valoriza. Ela não os põe no centro, porque o centro deixou de existir. Mas ela lhes oferece um espaço e respostas."

   O leitor pode pensar em qualidades ou vícios: honestidade (moral, intelectual, etc.), generosidade, boa fé, contra individualismo, ganância, preconceito (gênero, raça, etc.). Cada um de nós tem um pouco de tudo isso, cada característica está distribuída em uma gaussiana diferente que representa a composição geral da população para cada atributo citado. Exemplo: posso estar à direita na curva da honestidade intelectual, na média na curva da ganância e à esquerda na curva da paciência. Veja a curva genérica abaixo para entender melhor. E letra estranha (mi) indica a média de uma dada característica, por exemplo a distribuição de pessoas honestas. Quem está na média (em mi) é 'medianamente honesto'. À direita, estão as pessoas mais honestas, à esquerda, as menos honestas. E isso nada tem a ver com tendência política; Ali Lulá e bolsonésio estão ambos na extrema esquerda, de mãos dadas.
   Assim, o que nós somos de fato é a soma de um número infindável de gaussianas descrevendo cada aspecto do comportamento humano. Conhecer esse conjunto de dados é o Santo Graal dos 'físicos de dados' mencionado no trecho do livro acima. Felizmente, por enquanto isso só é de conhecimento da providência divina. Explica - sem justificar, naturalmente... - o comportamento de eleitores bolsonésios e Alis-Lulás, que têm determinada fatia de seu ID devidamente estimulada para que abracem o intento de seus manipuladores, que é o voto. Não entendo muito em desse conceito além da maneira como foi empregado em algumas obras de ficção que já li, mas parece representar bem minha percepção. Uma definição de dicionário de ID está aqui, e sugiro a leitura. Bate com tudo o que vimos em ambos os grupelhos (lembra dessa palavra dali em cima?) dos defensores desses candidatos, veja um trecho (grifos meus): O ID desconhece juízo, lógica, valores, ética ou moral. É exigente, impulsivo, cego, irracional, antissocial e egoísta. Não é ótima descrição do que vemos nessa turma?

Feliz Ano Novo

Reuni-me comigo mesmo, sob os auspícios de Mel e Lemão - em raro momento que permite ser clicado -, e protegi-os dos fogos comemorativos da passagem de ano. Os cães ficam assustados com os estampidos, sabemos. Não defendo nem um pouco a proibição dos fogos; cada tolo queima seu dinheiro como quer. Queimo com vinhos, e na gaussiana dos compradores compulsivos estou um pouco deslocado para a direita da média, reconheço. Fato é que desci para a adega escolher uma garrafa por companheira e notei-a tentando esquivar-se, sorrateira e na maior discrição. Estendi a mão com firmeza e seguirei. É você mesma, pensei. Veio o Ferraton Châteauneuf du Pape Les Parvis 2009, minha última garrafa que resolvera deixar para '21 ou '22, conforme comentei aqui. Desarrolhei e a rolha já chegou com aquele toque de chocolate/couro (qual?), agradável e marcante; a taça levada quase imediatamente à boca para abrir espaço na garrafa mostrou um pouco de álcool sobrando. Convenhamos, estava à temperatura ambiente e precisava respirar sua meia hora - adequado para um vinho nessa idade - enquanto começaria a cozinhar. Só com a proximidade do ponto da carne levei a garrafa ao balde com água e gelo. Os tempos bateram bem.


Ferraton Châteauneuf du Pape Les Parvis 2009 já mostra alguma coloração alaranjada bem discreta na borda da taça, sinal do envelhecimento. Mas está bem agradável. A fruta está menos presente, mas o toque de chocolate/couro é evidente; alguma especiaria dá bom toque. Mantém um travo adocicado bem discreto na boca, os taninos estão arredondados, acidez média, boa permanência e final. O fato de ter perdido um pouco de fruta dá-nos um desenho de sua estrutura e evolução. Se você tem Ferratons mais jovens, 2012, 2013, pode bebê-los agora, provavelmente estarão muito bons. Outras safras, 2014-2016, digamos, pode beber ou guardar. Já 2016+, guarde um pouco. Beber bons vinhos em seu momento adequado faz parte do ritual da degustação. Infanticídios, ainda que por completa falta de experiência do bebedor, impedem que a bebida alcance seu esplendor e, se não são um sacrilégio, seguramente constituem-se em perda de oportunidades e, claro, do valor investido. Para beber de qualquer maneira, procure vinhos simples; elas darão conta do recado.

Deixei de perder...

Recebo inúmeras 'promos' semanalmente. A maioria apenas bato olho. Mas acho que algum espírito (de porco) açodava-me esta semana, então resolvi conferir uma oferta da importadora Decanter. Vinho português, 10% ófi, R$ 120,00 por R$ 109,00.


Buscando o preço lá fora, 


Certo, é sem IVA, contanto uns 20%, daria seus 5,60 Euros. O Wine Searcher faz as contas pra você, basta selecionar a moeda desejada.


Assim, R$ 30,00 é o valor com as taxas. Dá seus bons 4x, com o exuberante desconto de 10%. O ano de 2023 será de muita luta. Fica a promessa de início de ano: continuar a debater o assunto com a mesma honestidade intelectual de sempre.

Obrigado pela leitura desta coluna, e pelas demais leituras durante o ano que se findou.

2 comments:

  1. Qual dos dois é melhor?

    ReplyDelete
    Replies
    1. Só um foi degustado... o outro foi comentado quanto ao preço.

      Delete