Saturday, February 11, 2023

Marcelo Akira Miho 4/2/1975-1/2/2023

Marcelo Akira Miho 4/2/1975-1/2/2023

Às vésperas de completar 48 anos meu amigo Akira, tantas vezes referenciado no blog e cuja amizade estendeu-se por mais de 20 anos, faleceu devido a problemas renais desencadeados por uma doença autoimune que há três ou quatro anos obrigara-o a parar de degustar vinhos. Se ele não podia sorvê-los, divertia-se analisando-os somente pelo olfato. Como estávamos juntos em várias confrarias distintas, para mim passava por maçante o prodígio de sua capacidade de desvendar vinhos sem levá-los à boca. Não é que acertasse o país... para vinhos bons, de terroir, costumava acertar a região. Alertado de já ter provado de algum produtor, acertava o vinho. Aqui o leitor encontra apenas um exemplo das inúmeras vezes em que ele surpreendeu alguns convivas sem jamais expressar a menor ponta de ostentação ou orgulho: humilde, explicava-nos por quais percepções notava a origem do vinho analisado. Recebi esta foto de Don Flavitxo, o Flávio do blog vinhobão com a seguinte mensagem: Essa é a imagem é a que quero ter do Akira... Preciso dizer que concordo?

Don Flavitxo, sabidamente um dos meus mentores intelectuais quando o assunto é vinho - junto do Akira, que trouxe-o para nossa confraria de dois - juntou-se a nós em vários encontros, quando protagonizamos reuniões memoráveis. Com o Akira, bebíamos e discutíamos como cachorros: cada um apontava as ideias estúpidas um do outro recorrentemente na mesma sentada, ao final das quais brindávamos ao vinho e, sem dizer as palavras, à amizade e respeito mútuos. O Flávio ofereceu nova dinâmica às conversas, porque então brigávamos todos contra todos em separado ou dois contra um, sem ressentimentos, e em qualquer alternância possível. Esse cenário até monótono só era quebrado nas raras vezes em que convidávamos o Romeu: nessas ocasiões, invariavelmente e sem combinar previamente, acabávamos todos contra o convidado que saía dos encontros devidamente espinafrado mas igualmente feliz. As profundas divergências em nossas visões de mundo em nenhum momento impediu que trocássemos impressões sobre elas, com comentários que podiam até ser pesados mas nunca desrespeitosos. Pessoas assim são raras. 

Outro grupo nosso eram As Meninas (foto acima), como costumávamos chamá-las: Dani, Rê e Carol, formavam o núcleo duro com eventuais adesões das amigas de cada uma delas. Os encontros podiam não versar sempre sobre vinho, mas o tema não era raro; essa turma gostava mais de um barzinho com música ao vivo, de dançar (elas!), ou mesmo de um jantar fechado aí sim regado a vinho, mas sem o compromisso da apreciação técnica, o que fazíamos Akira e eu em breves conversas enquanto o encontro se desenrolava. Uma conexão que gostei de cometer (sic) no blog foi Machado de Assis e o Apê da Carol, em 2014 e por ocasião da 'inauguração' do apartamento dela. Com o paladar um pouco sofisticado pelo meu primeiro borgonha (também oferecido pelo Akira), estranhei a aspereza de um vinho - o Finis Terrae - que até então tinha na memória como modelo de maciez. Foi um daqueles momentos em que percebe-se, com a sutileza de quem recebe um piano de cauda na cabeça, como nosso paladar muda com o tempo, muitas vezes sem que nos demos a menor conta.

O tempo e o acaso foram generosos conosco. A dado momento conheci casal proprietário de franquia de café lá no centro. Tudo errado: ele era na verdade professor titular aposentado da USP; ela, médica. A franquia, uma diversão. A Sra. N, Neusa, debutou no blog na tão fantasiosa quanto nervosa missiva a este mentiroso de plantão. Algum tempo depois do encontro fortuito comentava para o Akira sobre a nova amizade e ouvia dele que ambos - Wilson e ele - ministravam aulas na mesma faculdade em Araraquara. Foi assim que, em julho de 2019, juntando o Jacimon, amigo com idas e vindas de e para São Carlos por motivos profissionais, e o Romeu, eterno coringa de várias degustações em confrarias diversas, nos reunimos para prestar homenagem aos 50 anos da primeira alunissagem. Foi outra postagem que curti muito ter cometido (rs), principalmente a parte do macaco fazendo um sinal de não com o indicador enquanto recusava-se a entrar na Sputnik 2...

A confraria iniciada com o casal expandiu-se um pouco com o precoce falecimento do Wilson. Vieram a Margarida e a Elvira, amigas da Neusa, e o Ghidelli, amigo nosso, retornando ao país após certo tempo trabalhando no exterior, junto da Márcia, sua esposa. O Ghidelli chegou à confraria com muita experiência e conhecimento, principalmente sobre vinhos europeus, e muitas vezes descobria a procedência de vinhos de maneira certeira e elegante. Se treinar mais uns 200 anos (🤣), fica como o Akira. E deixemos claro que isso não é nenhum desabono, muito pelo contrário. Este Enochato que vos engana jamais poderá competir com o Ghidelli, quanto mais aspirar chegar aos insights do Akira. Na loteria da genética, a memória olfativa é - como em toda loteria - uma dádiva para poucos...

Eis que em algum momento de '22 apresentei o Akira às Moiras, confraria formada por pequeno grupo que se encontrou nos eventos Vinho e Turismo realizado pela Vinho e Ponto de S. Carlos e sucedeu ao grupo Camarão com Vinho - por sua vez uma dissidência (rs) da Noivas de Baco. Já mencionara o Akira a elas, que por por seu lado também haviam lido sobre ele nas postagens do blog; estavam então mais do que curiosas para conhecê-lo. Na foto ao lado, infelizmente, faltou a Luciana; a postagem está aqui e lá tem foto dela também... É claro que a empatia entre as Moiras e o Akira foi instantânea; seu jeito simples e fala tranquila conquistou-as de imediato e quando perguntei-lhes se gostariam de vê-lo em outros encontros, a resposta foi que gostariam de vê-lo em todos os encontros...

Cometendo diversos esquecimentos e pecando por abreviar esta narrativa, omitindo a recepção digna de realeza que recebemos do Nagib e da Magide quando visitamos esse meu outro grande amigo em convalescência lá por 2010, ou em encontros com o Paulo Marcos e o Whisner, ou com a Beth e a Isabela, ou o Alexander e Raquel, dentre muitos, muitos outros, vou convergindo para a reflexão de que o Akira não seguia qualquer religião. Isso não impede que 99% de seus amigos - eu, inclusive - acreditemos que o Além, qual seja sua manifestação, ganhou um ilustre morador. Vá lá, meu amigo. Encontre-se com seus antepassados, em especial aquele seu parente samurai, dono da espada que saiu vitoriosa da última contenda da qual participou, carregando em seu fio o sangue do oponente. Quem sabe a mana Simone não me manda uma foto da espada ancestral que permanece em sua família, de cujas tradições você carregou e honrou durante seu tempo por estas paragens. Prazer em compartilhar tantas experiências e momentos divertidos consigo!

10 comments:

  1. Carlos, vc como sempre certeiro nas suas ponderações. Parabéns, uma fala tão verdadeira, só é possível pelo grande carinho e respeito que vc tinha ao akira. Tivemos a felicidade de compartilhar tantos momentos juntos e foram sempre tão bons. Akira sempre estará conosco. E ele merece estar em um lugar em paz e feliz.

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    1. Não há dúvida. Obrigado pela leitura e pela manifestação.

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  2. Big Charles, tive que esperar um pouco, para as lágrimas secarem, antes de comentar sua bela postagem. Você disse tudo sobre o nosso querido amigo Akira, que nos deixou de forma tão súbita. Suas qualidades eram muitíssimas. Além do nariz eletrônico, invejável, ele possuia virtudes admiráveis. Era uma pessoa amiga, sincera, alegre, inteligente, culta, de honestidade ímpar e tantas outras qualidades. Mas uma coisa que me deixava admirado era o fato dele nunca reclamar de nada. Mesmo não podendo beber e ter que controlar a alimentação, não reclamava! Um cara incrível nos deixou. No lugar, fica um enorme buraco e muitas saudades das inúmeras vezes que sentamos juntos, principalmente na sua casa, para apreciar bons vinhos e celebrar a amizade. Como você disse, o céu está mais alegre. Que a imagem dele sorrindo seja a marca em nossas recordações… 🙏🙏🙏
    Abraços,
    Flavitcho

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    1. Olá, Flávio. Demorei a escrever por tentar várias abordagens e notar que nenhuma me satisfazia. Além, claro, de ainda estar sob impacto do ocorrido. Acho que a abordagem publicada, se não foi a melhor, aproximou-se do que eu queria dizer sobre ele aos nossos amigos comuns que, de repente, não se conhecem tão bem entre si.
      Obrigado pelos comentários, também muito francos.

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  3. Certa vez - Carlão e Isabella também à mesa - Akira e eu conversávamos e ele revelou que o aroma de frutas lhe foi apresentado desde o berço. Faz uns seis anos que tivemos esse papo. A estória ficou comigo e também a dúvida: se teria sido esse bem-bolado exercício já em tenra idade que potencializou o que viria a ser uma genial memória olfativa. Essa primeira foto do Akira já muito magro e dando ciao, com um sorriso no rosto, me fez chorar. E pensar sobre ele. E ver que essa imagem traduz o lado estoico de um excelente e refinado confrade.
    Beth Sikar

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    1. Oi, Beth. Sim, o fato do pai do Akira brincar com ele recém-nascido, segurando frutas em frente a seu nariz, provavelmente aguçou a percepção dele para odores. No início de sua doença ele pediu-me para avisar às confrarias para não deixar de convidá-lo para os encontros com receio de que ele ficasse chateado por não beber. Nada disso. Como ele mostrou para nós durante os anos que se seguiram, mesmo sem beber dos vinhos é possível continuar a divertir-se com eles.
      Obrigado pela leitura, e pelo comentário.

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  4. Lindo tributo a teu amigão Akira, Carlão! Muito merecido! Do pouco que convivi com ele (em reuniões em tua casa, ou em alguma noite com pizza em casa, com Romeu e contigo), e das tuas palavras com este "post", aprendi que ele passou por "aqui" como um cometa, de maneira fugaz e com brilho que jamais será esquecido. Obrigada, Carlão, por eternizar aqui algumas imagens e lembranças do Akira.
    Sonia Biaggio

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    1. Olá, Sonia, grato pela leitura e pelo conforto da sua mensagem.

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  5. Carlão, que coisa mais triste que foi isso. O Akira sempre foi uma pessoa fácil de interagir e logo comecei a achar necessário a presença dele nas nossas reuniões. Como o Flavinho falou, sempre terei na memória a imagem dele sorrindo, procurando um gesto de concordância em um assunto qualquer. Ele levava a conversa pelos caminhos da concordância, mas ele já tinha exposto a opinião dele com tamanha clareza que ficava difícil de discordar... Mas obrigado por colocar essa passagem do Akira de forma tão bonita. Vamos sentir saudades dele, mas em algum lugar outros terão a companhia dele numa prosa bem animada.. Vamos celebrar a vida e as pessoas que convivemos!
    Luigi

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  6. Sim, isso mesmo, celebrar vida e as pessoas. E ter como unanimidade a percepção das pessoas sobre nosso amigo.
    Obrigado...

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