Friday, March 10, 2023

Uma homenagem ao Akira

Introito

Demônios diferentes nos assolam em momentos distintos.
Dito D'Oenochato

   Acho que é isso, conforme 'explica' a epígrafe: algum demônio impediu-me de escrever com a alegria habitual um pouco mais sobre vinhos, nestas últimas semanas. Os vinhos de sangue, suplementarmente, aqueceram-me as veias à ebulição. As reflexões sobre valor do vinho - ainda não terminaram, para desesperança de muitos e alegria de uns poucos masoquistas - continuarão em breve, mas será bom resgatar encontros que aqueceram meu coração. A sra. Neusa (mãe do Akira, não confundir com a Neusa nossa confrade) deixou-me com algumas garrafas mais simples ainda restantes na adega dele, para que nos reuníssemos, em nossas diversas confrarias, e brindássemos à sua memória. Não vou chamar o assunto à baila com pompa e circunstância quando isso acontecer; não é o caso. Aqui vai um encontro sem eles.

Encontro da confraria mais antiga turbinada

   - Nosso primeiro encontro tem que ser com vinhões!
   Assim don Flavitxo de posicionou tão logo comentei com ele sobre a ideia. Mentalmente, guardei os vinhos recebidos da sra. Neusa. Flavitxo fizera parte da trinca já citada, uma de minhas primeiras confrarias. Outro grupo foi aquele formado com Senhora N e completado pelas amigas Margarida e Elvira, posteriormente preenchido pelo Ghidelli e Márcia. Temos os 'satélites', Romeu, Jacimon e recentes misturas com as Moiras e as Meninas. Resolvi reunir pelo menos um representante de cada grupo, e compareceram D. Neusa, Luciana, Ghidelli, Márcia, Flávio e este escriba. 

O espumante é uma bebida de celebração em especial; nada como começar assim o encontro. Recebi os convidados com um Philippe Foreau Domaine du Clos Naudin Vouvray Reserve Brut 2007, garrafa safrada desse consagrado produtor do Loire. Don Flavitxo aterrorizou a todos sacando a rolha com a técnica ninja zero noise e dizendo que estava sem gás... mas as borbulhas estavam todas lá. Sei que champagnes mais antigas descem para notas bem cítricas de abacaxi - ou próximo a isso - e preparei-me. Qual nada! O Naudin estava ótimo! É feito de Chenin Blanc e mostra como meros espumantes (sic) bem feitos podem competir seriamente com xampas. Rindo: não, não é o caso do que cometemos aqui, vendidos em garrafas de bebidas com borbulhas... experimentei aquele negócio eleito como quinto melhor espumante do mundo em degustação em S. Carlos, na época do burburinho. Perguntei ao alegre ajudante que passava com uma garrafa quanto tempo poderia guardá-la. Sem saber, e solícito, foi perguntar; voltou cheio de orgulho e disparou: - Doutor, dá para guardar por seis meses, ainda! Bem, Naudin é espumante de boa acidez, elegante, gostoso... não costumo usar essa palavra, mas foi a sensação. Alguma permanência, bom final, infelizmente não anotei melhor as características. Ainda tinha algo de pão, fermento, característico de espumantes. O pessoal gostou... O Condrieu Les Chaillets 2018, do Cuilleron, grande produtor do Rhone, chegou com notas discretas no nariz e acidez um pouco baixa... não sei como consegue fazer tão bonito na boca. Têm uma concentração diferente, para a qual falta bebedor com melhores talentos. Condrieus são feitos a partir da Viognier, e devem ser bebidos novos (até uns 4 ou 5 anos, os melhores), embora possam envelhecer outros 5 e adquirem outras notas. O sugerido, parece, é bebê-los novos. Provei poucos na vida, e nenhum me decepcionou...

Chegou a vez dos tintinhos. O Trimarchisa 2016, da Tornatore, produzido na DOC do Etna, é um corte Nerello Mascalese (95%) e Nerello Cappuccio feito na Sicília, e aberto como 3 horas antes do início do encontro. É um vinho médio - corpo, acidez, tanino - onde os médios somam-se de maneira impressionante para compor um belo exemplar da Itália. Já fez tempo desde prova, não guardei as notas; é rico, elegante e muito macio, mesmo com taninos bem presentes. Tem bom equilíbrio, e agradou a todos. A 'prova' é que a garrafa secou mesmo! Os outros vinhos, embora melhores, por chegarem depois, sobraram um pouco... O Château Langoa-Barton 2010 é um Grand Cru Classé pela classificação de 1855 produzido em Saint Julien e categorizado como terceiro vinhedo. Ele é irmão (sic) do também célebre Léoville Barton, segundo vinhedo pela mesma classificação. Na grande safra de 2010 é um corte de 73% Cabernet Sauvignon, 17% Merlot e 10% Cabernet Franc, foi aberto algumas horas antes do encontro. Novamente não recordo-me bem das notas, mas a fruta era bem evidente, aquela estória café/chocolate/fumo, com muito mais. Sua complexidade é grande, acidez e taninos presentes - acidez não impressiona - mas um conjunto excepcional. Aqui uma palavra sobre os Grand Cru Classés de 1855: sempre leio que os châteaus foram classificados de acordo com seu valor - e não pela qualidade. Talvez não houvesse uma forma melhor de avaliar a qualidade naquela época (o sistema de avaliação até onde sei foi criado pelo Robert Parker nos anos '70), então tomou-se essa baliza quem sabe sob a premissa de que vinhos mais valorizados fossem melhores. O leitor de boa memória conhece esta minha máxima: deixados às cegas, os melhores vinhos sempre encontram as taças primeiro...

   O sistema está petrificado: ninguém entra ou sai, ninguém é deslocado para cima ou para baixo (há uma exceção). Com o tempo, a qualidade de alguns châteaus foi se alterando. Claro: filoxera, duas guerras com a consequente falta de investimentos... atualmente podemos encontrar um quinto vinhedo vendido a preço de segundo. Os primeiros vinhedos e a maior parte dos segundos encontram-se (nas últimas décadas pelo menos) em ótima forma. Por isso concentrei-me em rememorar algo do Château Montrose 2003 que provei em um aniversário pouco tempo atrás e comparar com Langoa-Barton. Junto do Quilceda Creek 2004 (Columbia Valley), mostraram uma sutileza de fruta a ponto de enganar os dois melhores cafungadores (rs) que já conheci, o Akira e o Flávio. Nenhum deles identificou a tal da Rainha das Uvas, a Cabernet Sauvignon. Em Langoa Barton ela é perfeitamente identificável - e creio mesmo que mais de uma pessoa identificou sem muita dificuldade. Talvez o próprio Sassicaia tenha essa característica e minha má estima para com ele possa ser um tanto injustificada. Só que... sou da escola onde bons vinhos (de mesmo nível) defendem-se em uma avalição às cegas. Não importa se de regiões ou cepas diferentes, vinhobão é vinhobão em cima da mesa e embaixo d'água. Minha impressão é que um Remirez de Ganuza Gran Reserva defende-se bem em qualquer mesa, e ponto. Um Malleolus de Sanchomartin também; e não à toa don Flavitxo precisou de apenas uma palavra para defini-lo. Voltemos das digressões. Sendo Langoa-Barton um bom representante dos terceiros vinhedos (Montrose o é dos segundos!), em análise rasa está bem explícita a diferença entre eles, com clara superioridade para o último. Então para mim a degustação teve um duplo sabor, adicionando à prova de um terceiro vinhedo esta comparação capenga que compartilho com os leitores. Ou seja: ainda nessa faixa de preços - Montrose custa mais ou menos o dobro, USD 250,00 - há sim diferença na qualidade dos vinhos. A postagem alongou-se. Depois comento dos outros dois.

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