Sunday, July 30, 2023

Três espanholes iguaizinhos... ou quase...

Introito

Agora nós estamos em guerra com a Eurásia.
O inimigo sempre foi a Eurásia.
A Lestásia é uma nação aliada.
1984, de George Orwell

A verdade não mente.
Dito d'Oenochato

   Havia uma disciplina na escola primária muito de meu agrado: redação. À reboque, vinha interpretação de texto. Lembro-me com carinho das professoras daqueles anos iniciais de meu desasnamento, Dona Martha e Dona Cida, cidadãs exemplares que ajudaram a formar os primeiros pilares de meu caráter. Interpretar textos virou como uma catarse contra as horas onde a escuridão da ignorância tentava bloquear minha curiosidade pelo conhecimento. Um trecho de música um tanto complexo assombrava-me muito lá pelos 20, 22 anos:

Adormecendo as uvas, reconstruindo em favas
Aconteceram as chuvas, redespertaram em lavas
Compareceram em chamas, estrangularam as falas
Carbonizaram miúdos, perpetuaram-se em galas
Zé Ramalho

Um pouco adiante no tempo chegaram os primeiros dias da internet discada. Já era possível visitar algumas páginas com informações antes restritas a livros. Estavam lá aqueles pintores que venerava, como Bosh e Dali. Então, visitando uma página, encontrei a informação cuja conexão com o trecho perpetuaram-se em galas foi imediata: Elena Ivanovna Diakonova, conhecida no círculo artístico como Galarina, ou Gala para os íntimos, posteriormente Gala Dalí, inicialmente amante e depois esposa e grande inspiradora do mestre Salvador Dalí, foi por ele perpetuada em diversos de seus quadros, desde sua fase clássica até as obras primas surrealistas. Fica assim dado o sentido do verso final da estrofe, cuja interpretação geral torna-se bastante clara (risos) perpetuar-se em galas é perpetuar-se como Gala está imortalizada nos quadros acima. Atualmente tento desvendar o sentido de outros versos:

Só querem nos roubar
E nos fazer de palhaços
Depois que estão eleitos
Vão morar em seus palácios
Eduardo Costa

   Confesso, ainda não consegui entender exatamente a mensagem. Sobre quem fala o inspirado autor da letra? Se algum leitor conseguir espantar a escuridão acendendo uma vela na escuridão, por favor, ajude-me...

   NAP será obrigado a responder ao requerimento de informação perpetrado pelo deputado federal Kim Kataguiri. A barbaridade está aqui. O parlamentar questiona a aquisição de móveis de luxo sem devida licitação - até parece que NAP quer morar em um palácio... mas... como chama-se mesmo a residência oficial do presidente da república? Não foi ele quem a batizou assim! Não bastasse, ora bolas, não foi NAP quem saiu de carro oficial, parou na loja, escolheu e passou o cartão corporativo. Quem fazia isso era o outro. NAP provavelmente recebeu a lista das peças desejadas pela primeira dama, correu os olhos e comentou estarem bons. Ele seguramente acreditou custarem a cama, a mesa e o sofá, respectivamente, R$ 42,00, R$ 36,00 e R$ 64,00, nada mais. NAP é um ser integrado com a realidade de seu tempo, sensível aos problemas nacionais e sabedor da falibilidade humana. Tanto isso é verdade que, quando errou, veio pedir desculpas em público, de cara limpa. Vejam:


   Portanto não venham com argumentos rotos sobre a idoneidade da alma mais honesta deste país, ou acusações sem nexo para cima do homem mais probo de todos os tempos, em toda as galáxias. Não passarão! Digo, não colará. A verdade não mente!


Três espanholetos iguaizinhos... ou quase


Há muito pensava em provar desta vertical, e aconteceu: três exemplares do Faustino I Gran Reserva em três ótimas safras: 2001, 2005 e 2009. A graça dessas brincadeiras está em acompanhar a evolução do vinho no tempo. Com o Ghidelli e a Márcia no preparo de um macarrão com molho vermelho com filé ao Champion Paris, reunimo-nos numa quarta-feira preguiçosa (risos!) para festejar regressos recentes e partidas em futuro não tão próximo. Então teremos outras comemorações de partida pela frente... 😃. Seu contrarrótulo traz a informação de ser um Tempranillo, mas encontrei comentários da safra 2001 ser um corte 85% Tempranillo, 10% Graciano e 5% Mazuelo (três das quatro cepas típicas do corte riojado; a quarta é a Garnacha), enquanto a 2008 seria diferente: 92% Tempranillo e 8% Graciano. Aceitemos a possibilidade de mudanças no corte conforme a safra. 

   Servido o Faustino I 2001, Ghidelli ataca de primeira: notas de eucalipto. Tinha fruta contida, acidez um pouco abaixo do esperado, boca marcada por um ligeiro dulçor, taninos bem redondos, corpo médio, final um tanto curto. Bem equilibrado, bom, mas aquele equilíbrio um tanto 'por baixo', no sentido de não passar a sensação de um grande vinho, apesar da harmonia típica destes. Se beber sozinho, dirá que está muito bom; se tiver padrão de comparação, nem tanto. Foi o caso. Ah, pela cor, não aparentava a idade. Faustino I 2005 ofereceu à D. Neusa notas de curral e pasto, e alcaçuz para o Ghidelli. Couro e algo tostado para este Enochato. Taninos mais presentes, redondos, melhor acidez, corpo igualmente médio, está ótimo para ser degustado. Faustino I 2009 mostrou-se mais alegre, com fruta escura bem marcada, couro ou tabaco; boca com fruta vermelha, maior acidez dentre as garrafas, final mais longo, muito bem harmonizado. Não notamos madeira - sabemos que tem. Beba agora se gostar desse estilo alegre, frutado, ou guarde mais um pouco. 

Faustino I Gran Reserva tem uma tiragem grande: cerca de 240.000-245.000 garrafas - não é feito todos os anos. Com tal volume, fica a pergunta: provém de um só vinhedo, ou é composto por uvas provenientes de lugares diferentes? Mesmo sendo de vinhedo único, pela quantidade seria impossível pensar-se em um terreno homogêneo; daí uma variação na qualidade e composição das uvas quanto ao terror ser inevitável. Isso claramente geraria garrafas com característica diferentes de acordo com o lote de uvas processadas. Não é uma crítica, é uma reflexão. Ainda assim o produtor consegue fazer vinhos consistentemente bons que, se comprados a bom preço, valem a pena. Seu preço 'lá' varia bastante. Safras recentes (2021) estão abaixo de 20 dólas. As safras '09, '05 e '01 custam em média, respectivamente, 32, 46 e 90 dólas. Aqui custa atualmente (em 'promo') R$ 289,00 (preço cheio de R$ 360,00). Comprei a safra '05 por algo como R$ 130,00, e anos depois a '09 por R$ 199,00. Eram boas compras à época; atualmente não tanto; nessa faixa temos boas alternativas no mercado. 

Por sobremesa tivemos pudim com camada de coco ralado e dois vinhos: um Taylor Fladgate 10 anos Tawny. Mesmo os Taylor's mais simples são aveludados; imagine um envelhecido por 10 anos em barricas de 600 litros e depois engarrafado... no nariz esbanja fruta, algo como caramelo, chocolate e mais camadas. Boca com fruta em compota, figo, taninos muito redondos, acidez e corpo médios tocados a 20% de álcool muito bem integrados e um toque doce característico do estilo Porto. Ótima permanência e final longo fecham as características do que dizem ser um exemplar apenas um pouco melhor do que os mais rasteiros. Já bebi um Taylor 20 anos, mas minhas experiências com Portos de melhor qualidade são poucas. Guardei um exemplar simples por mais de 20 anos e... é outra estória. A Elvira compareceu com uma surpresa de sua predileção, um Jerez: Media Legua Pedro Ximénez é produzido pelo sistema Solera, característica da região de Jerez. Se entendi bem, no estilo Pedro Ximénez (mesmo nome da cepa), a colheita é feita tardiamente, quando a uva acumula muito açúcar e gera um vinho bastante doce e com alto teor alcoólico. Contudo o doce é contrabalanceado pela acidez - sempre ela... - gerando um paladar muito elegante e nada enjoativo. Como característica dos Jerez, o figo estava lá, bem marcado, no nariz e na boca. É mais complexo no nariz, mas não consegui distinguir. Tem corpo médio, final longo, retrogosto também adociado. O Jerez sempre impressiona, e Media Legua não deixou por menos...

2 comments:

  1. Carlão, boa narrativa (?) dessa quarta feira gorda hein? Achei que esteve tudo no ponto certo, menos a acidez do 2001.. mas perfeito para a quarta. Legal ver a evolução dos três Faustino's. Não é um produtor que eu luto por uma garrafa, mas foi muito bom. Para este Extremenho, o dono da noite foi o Pedro Ximenes, talvez pela descendência?

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    1. Luidgi, obrigado pela leitura.
      Sim, a acidez do 2001 estava mesmo baixa, conforme comentado.
      E a D. Neusa apontou que deveríamos ter provado primeiro o Porto, pois ele ficou um pouco apagado ao ser degustado depois do Jerez. Mas acho que ainda assim o PX passaria por cima dele... no final, concordo com todos seus comentários, sem reparos.

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