Sunday, July 3, 2022

O senso do maravilhoso e os segundos vinhos

Introito

   Tenho escrito repetidas vezes que hoje em dia o cidadão de bem com intenção de comunicar algo regularmente não pode abster-se em desmascarar a desinformação e muito menos tem o direito de supor que o país anda às maravilhas. Não podemos nos calar. Claro, é uma opinião. Os covardes, os tolos e até gente boa pode ter visão diferente. Resta saber a proporção de um, de outro e de outro; suponho que gente boa discorde na proporção inversa dos primeiros. 
   Percebeu como as últimas semanas foram uma evolução desmedida de podriqueiras e idiotices? Ao abordar aqui um assunto recente, ele já envelhecera há muito. Bastava parar para refletir um ou dois dias e pronto, algo novo tornava envelhecido o foco de meu pensamento. Ao fim e ao cabo, preciso de um período sabático para recuperar o fôlego. Quiçá a esperança.

O senso do maravilhoso


O senso do maravilhoso é algo como uma epifania notadamente causada pela surpresa da descoberta no campo da ciência, filosofia ou ficção científica. Defenderei que também na prova de um bom vinho bem servido, mas não agora. Na ficção científica dos primeiros tempos - anos 30, depois do termo ser efetivamente cunhado na década anterior - a sensação de admiração quando a pequenez humana era confrontada com a vastidão do espaço ou do tempo conduzia o leitor a uma admiração e êxtase desencadeada pela súbita expansão de sua própria percepção do mundo/universo ao seu redor. Lembra dos anos 60, libertadoras experiências com LSD, novas portas do eu, amplificação da sensibilidade, enfim, toda aquela conversa mole? O leitor de Ficção Científica já se acostumara havia 30 anos... Quem conhece as boas obras do gênero sabe: um orgasmo mental comparável ao experimentado pelas grandes mentes ao deparar-se com pungentes descobertas. Os Cientistas (com 'C') que experimentaram, sabem. Degustar um bom vinho bem servido é uma viagem interior: o bebedor descobre a si mesmo, à medida em que percebe quanta fruição pode existir em uma simples taça: desvendar as camadas de frutas e outras percepções olfativas; comparar com as sensações da boca; apreciar os taninos, contrapô-los ao álcool e à acidez; notar a persistência e o retrogosto. Isso não vem fácil. É-me muito complicado, mas advirto o leitor que nos grandes vinhos torna-se mais factível para quem está treinado - para quem está treinado! O degustador deve estar acostumado às características do vinho, pronto a perceber suas principais qualidades, dadas pela tão falada mas pouco compreendida estrutura do vinho: um delicado equilíbrio entre álcool, açúcar, taninos e... minha sempre referida acidez. Sinta-se livre e goste do que for: Carménères, Primitivos, Lambruscos (os que renderam a péssima reputação do estilo) ou mesmo Borgonhas (poucos gostam, felizmente). Seu gosto é inquestionável. Sua boca torta é que é lamentável... 🤣

Segundos vinhos

   Muitos produtores possuem o segundo - e terceiro - vinho produzidos a partir de seu único terreiro (rs! Terroir também...). Ele até planta várias cepas no mesmo espaço para promover um corte, vinificando tudo junto ou separadamente. A depender da safra, se boa, ele lança seu vinho principal. Se as condições não são favoráveis à produção de um vinho digno do primeiro rótulo, ele apresenta-o como segundo, ou mesmo terceiro selo. Outros produtores fazem uso dos rótulos intermediários a partir da seleção mais ou menos apurada dos cachos, também conforme a safra: para uma boa safra, ele usará mais cachos no primeiro vinho; em colheitas inferiores, usará menos, e destinará mais cachos para os demais vinhos. Ao final a quantidade de garrafas produzidas pode ser mais ou menos a mesma, mas a composição entre primeiro, segundo ou terceiro rótulos pode variar bastante de ano para ano. Sinta-se livre para imaginar as combinações possíveis entre rótulos e safras. Não sei dar algum exemplo real disso tudo, embora já tenha ouvido de importadores estórias da cerimônia de avaliação de um Grand Vin no Château, e do choro contido de alguns (rs) quando o proprietário declarou que lançaria apenas o terceiro rótulo da casa. Isso pode significar para os importadores alguns milhões em receita a menos no fluxo de caixa. Para conhecer alguns segundos (e terceiros) rótulos famosos, o leitor iniciante poderá... expandir sua mente (risos) aqui.

O vinho do Prelado

Guardei este vinho por tempo demais - pela minha perspectiva, claro. Embalado pelas sábias palavras do Armando durante o almoço de hoje, 'seus melhores, beba sozinho', resolvi apunhalar pelas costas vários possíveis confrades. Aberto às 20:00, escrevo a partir das 23:00. Le Prélat de Pape Clément 2007 é um Graves, região que, venho percebendo, gosto muito. Os vinhos dalí são expressões mais musculares da Cabernet Sauvignon, na esteira do que aprendi a gostar nos tempos de boca torta, confundindo madeira com potência nos chilenos. Prélat tem clara especiaria já no buquê, misturada a frutas, couro ou defumado com um toque terroso. Boca com pegada leve mas presente da Cabernet e madeira, corpo médio com acidez bem marcante, embalado a modestos 13% de álcool. Pode chamar sul-americanos com 14,5%, 15% de álcool, e eles não vão sobrepujar Prélat: a acidez comanda esse meio de campo. É muito arredondado, provavelmente pela quantidade generosa de Merlot; não tem grande persistência em boca, mas o retrogosto é gracioso. Um vinho que remete à sensação de felicidade engarrafada e quase acomete-nos ao maravilhoso, mas falta algo, uma pitada de personalidade. Entristece que, sendo um vinho de USD 25,00, custe aqui uns R$ 700,00. Paguei preço razoável em uma queima, quando ainda comprava em 'promos' das importadoras tubaronas. O que não entendi é que Prélat e Le Clémentin du Pape Clément são apresentados ambos como segundos rótulos, em algumas páginas. Não tive muita paciência para procurar mais. Esta safra 2007 parece ser um corte de 46% Cabernet Sauvignon, 49% Merlot, 3% Cabernet Franc e 2% Petit Verdot. Há algum tempo bebi seu irmão maior, notas acima deste. E foi-me impossível, degustando este exemplar mais simples, deixar de relembrar aquela outra experiência - aí sim, um senso do maravilhoso completo e acabado.

4 comments:

  1. Olá Carlos,
    Realmente é um absurdo este vinho ser vendido a 700 R$ no Brasil. É um vinho simples e facilmente encontrado por volta de 15-18 Euros aqui na Europa. Ou seja, está sendo vendido no Brasil por 7 vezes seu valor de mercado. A exploração de sempre. Acho que você esperou demais para beber este 2007.
    Dionisio

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    1. Se o leitor sugere que ele mais jovem poderia remeter ao senso do maravilhoso, não sei dizer. A safra não ajudou muito, mas pelo preço lá - justamente cerca dos USD 25,00/18,00 Euros que comentamos - ainda é um belo vinho...
      Obrigado pela leitura.

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    2. Este vinho nunca será maravilhoso, senão seria engarrafado como Pape Clement, não como terceiro vinho. É apenas um bom vinho, nas melhores safras.

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    3. Veja, falamos de coisas diferentes.
      Eu, em minha resposta a seu comentário: ...se ele mais jovem poderia remeter ao senso do maravilhoso, não sei dizer
      Você: Este vinho nunca será maravilhoso.

      Ainda, conforme escrevi na postagem, ... quase acomete-nos ao maravilhoso, mas falta algo.
      Então parece que convergimos...

      obrigado.

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