Wednesday, March 29, 2023

A estória do valor do vinho III

Introito

   Aquela senhora delicada no trato, até simpática embora muito indesejada, fez outra de suas visitas há uma quinzena. Carregou consigo seu Luiz Manechini, pai da Carol, homem de sorriso fácil com quem tive pouca oportunidade de conviver. Operava com gosto e maestria a churrasqueira, contudo foi pego no contrapé por um câncer algo invasivo contra o qual lutou bravamente durante um ano e tanto. Mais uma batalha vencida pela morte com efeito profundo em nossos corações, e cujo efeito secundário é levar consigo parte de meu ímpeto em escrever. A certo momento colocamos a mão na cabeça e refletimos acerca a necessidade de continuar vivendo.

   Comentamos anteriormente sobre o poder de compra do Real - em outras palavras, do quão pobres somos/ficamos -, sobre o aumento no preço dos vinhos sul-americanos e o preço do vinho importado aqui no Brasil, observando como vinhos de qualidades bem diferentes podem chegar ao mercado com preços similares, tornando a escolha de bons vinhos um exercício de paciência e comparação. Finalmente, abordamos o preço e o valor do vinho nacional e sua paridade teórica (sic) com o importado, apontando ser o mais honesto comparar taça a taça uns e outros. O ponto é: como já mencionado, nos últimos anos e mesmo pré-pandemia, participava de degustações aqui em S. Carlos e caia direto nos nacionais e sul-americanos. Não os compro, mas, como sempre digo, não me recuso a bebê-los. Quando tiverem uma relação preço-qualidade adequada, talvez compre, mas não ao preço e qualidade encontrados nos eventos. Olhando para 350 garrafas atrás de mim, 90% de europeus, alguns norte-americanos e australianos: não os compraria em absoluto, na verdade...

As mentiras que contam

   O mercado está cheio de mentiras. No interno, querem fazê-lo acreditar na estória de termos clima adequado para produzir vinhos: terroir californiano já temos; a Borgonha que se cuide... Antes referiam-se apenas aos espumantes nacionais como produtos de alta qualidade, mas perderam completamente os escrúpulos e agora até os tintos brasileiros são premiados, celebrados e disputados lá fora. Em breve, os brancos também, escreva e guarde. Comprovei (está aqui!): enquanto nossas premiações em dado concurso chegam historicamente a 322 medalhas, menções ou diplomas por bom comportamento (risos!), o Chile, país cujo vinho é fraco, vivo dizendo, acumula 6.733 comendas! Leitor, um número 23.7 vezes superior não pode ser encarado como um engano, erro ou má fé do articulista. 23.7 vezes a mais é uma lavada! Sisqueceram do 7 a 1? Se pensam naquilo como uma lavada, caiam na real: foram apenas 7! Imaginem a Pátria em fúria se tivéssemos levado de 23! E de quem? Daquele que reputo ser o mais desimportante dentre os produtores importantes de vinho do mundo.
   Salete, cadê seu vinho nacional comprado na visita àquela vinícola da região? Estou louco para botar três garrafinhas na frente dele! Ponho três, mas não compro o vinho nacional. Reputo: saberei reconhecer qualquer resultado, mas precisaremos ter uma ou duas pessoas presentes na brincadeira que conheçam de fato sobre vinho. Dizer eu gostei é pessoal e nada tem a ver com os aspectos técnicos da avaliação de vinhos!
   Não acusarei os enólogos brasileiros; não os conheço. Apenas não me façam crer no impossível; eles são apenas enólogos. Não estudaram Milagres I (nem II, nem III) no Vaticano. Estudei Cálculo (I, II, III), depois Física Matemática (I, II) e na sequência Física Estatística (I, II), e sei um pouco como se faz contas. Então não, nossos enólogos não fazem milagres ante as limitações geográficas - e em última análise climáticas - da América do Sul. E da minha parte arrogo-me na aceitação de saber fazer um pouco de contas... mesmo sendo apenas multiplicação, adição e seus contrários...

  Os importadores estão cheios de conversas mentirosas. Loucos para trazer os melhores vinhos para você, aquela estória toda de andar à caça das grandes oportunidades (para eles) trazendo-nos safras apenas medíocres das mais famosas regiões do planeta. Claro, existem muitos pontos fora curva, mas quem olhar a curva em si notará que é de dar medo o quanto os pontos dispersam-se pouco em torno da mediana. E para que? Para pagar USD 10,00 a menos em uma garrafa de USD 100,00, e aumentar mais um tantinho seu ganho? Vagabundos. Nos enganam com mentiras na cara dura, sem o menor constrangimento. Já ouvi várias, quando conhecia menos, e elas pareciam fazer sentido. Queria ver um filho de demônio desses chegar na minha frente nos dias de hoje, com conversinha mole. Peguei um outro dia (importador e produtor nacional), numa degustação online. Chapas brancas saíram da sala rapidinho; o franqueado riu para disfarçar a vergonha; a enóloga da casa não teve coragem de defender a falta de acidez do produto - aliás, abalizou a opinião deste Enochato. Minha avó, se presente, não hesitaria em soltar um Ferro na boneca! com sua voz zombeteira. Cochichou-me, lá do Céu.

   O marketing bombardeia o consumidor com expressivo mau gosto. E não é de hoje! Em 2015 este escriba registrava excessos da concorrência empobrecendo a discussão, com a chamada (adaptada para os dias de hoje) Poderia custar até 30% a mais se fosse importado por outra empresa - está aqui! Aí este dublê de blogueiro faz as contas e conclui ser possível comprar por menos da metade do valor ofertado, caso a importação fosse realizada por importadoras mais honestas. Depois eu é quem sou um Enochato!

   O desejo do consumidor em ser feito de otário também não pode deixar de ser comentado. O importante para esse idiota de plantão é o tamanho do desconto. Sem perceber que o céu não é o limite, sisquece do quanto uma margem pode ser aumentada para então ofertar-se um desconto. Calcule uma margem de 6x, e ofereça 50% de desconto. Pronto, é o suficiente para colocar no bolso o triplo do valor do produto no mundo civilizado. Prefiro 10% de desconto em um importador honesto; invariavelmente compro mais vinho pelo mesmo dinheiro. Adquiro meus vinhos pelo importador, não pela qualidade do produtor. Se necessário, trago o vinho 'famoso' de fora, pois vale a pena. Postagens passadas já atestaram isso. Veja uma aqui!

A subversão das vinícolas boutique (ou de garagem)

   O termo remonta a 1991, quando o J.L. Thunevin, do Château de Valandraud produziu sua primeira safra literalmente na garagem de casa. O movimento levado a cabo por diversos produtores de ponta de Bordeaux foi um resposta ao engessamento hierárquico da classificação de 1855. Muitos produtores que abraçaram o movimento hoje vendem seus vinhos a preço similar ao dos bons Terceiros Vinhedos. Por aqui as vinícolas boutique viraram moda e pouco importa se os vinhedos têm três ou quatro anos de idade, muito novos para oferecer vinhos de qualidade ainda se estivessem em um terroir perfeito. Os carcarás sequer encaram o trabalho duro, pretendem produzir meia dúzia de garrafas e vendê-las a preços exorbitantes simplesmente por seguirem uma moda distorcida por eles próprios em favor de projetos turísticos com nenhum apelo à qualidade.
   Nada contra o turismo vitivinícola. O problema é o uso descarado da máxima explorar o turista, não o turismo, situação onde o produtor inclui seu vinho a preços absurdos no custo de refeição oferecida nos Châteux (rs) país afora aos consumidores de boa fé - mas completamente desinformados. Esses consumidores, sem a menor noção de custo e valor, portam-se como autênticos perdulários acreditando estar consumindo algo similar ao ofertado em outros mercados.

Conclusão

   Maior senso crítico por parte da população - na hora de comprar qualquer idem de consumo, na hora de votar, na hora de ser cidadão - é um imperativo para fazermos deste pasto chamado brasio um lugar digno de se viver. PTlhos e PSDBelhos tiveram tempo suficiente para colocar o país em rota de crescimento sustentável. Nenhum deles o fez. Como toda revolução, a nossa - quando vier - deverá começar por baixo e subir. A conseguirmos mostrar aos maus importadores - de roupas, tênis, vinhos - o devido lugar de seus produtos - no meio de suas ideias do que seja plano de negócios - estaremos melhorando enquanto país. Ela terá de ser uma revolução de costumes: precisamos nos desacostumar (sic! rs!) de ser idiotas e nos portar como cidadãos. Se preferirmos passar por chiques bebendo Catenas e Casilleros como se fossem o fino do fino, e valorizarmos vinhos tranqueiras ao nível de bebidas verdadeiramente distintas, teremos de enfrentar a maldição da ignorância até a próxima gestão do Senhor. Aviso: ela vai demorar para chegar...

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