Wednesday, May 24, 2023

De tradições milenares ou Evento da Mercearia 3M - parte II

Introito

“Those who cannot remember the past 
are condemned to repeat it.” 
George Santayana, The Life of Reason, 1905

Jester, conhecido como bobo da corte, é uma figura recorrente na História. Conta-nos a Britannica sobre seu surgimento entre os faraós da Quinta Dinastia Egípcia (aproximadamente 2500 a 2350 AC), tornando-se comum nas sociedades ocidentais a partir do século XII, onde gozava do privilégio de ser o único cidadão com permissão para escarnecer até mesmo o Rei. Não temos mais reis e o bobo, arrisco, desembocou no comediante de nossos dias, com a diferença deste eventualmente perder sua imunidade e passar a ser perseguido em algumas  federações decadentes muitas vezes sob a égide da própria Justiça. A ninguém é vedado descumprir a lei, como a ninguém era vedado calar o bobo, e reinados não eram exatamente ambientes democráticos. Estamos perdendo para regimes absolutistas? Eles deveriam ter desaparecido na Idade Moderna... Se enfrentamos dificuldades em lidar com comediantes, é porque algo está mal em nossa sociedade. Estes dias os mecanismos de buscas retiraram o livro do Adolfo de seus resultados. Não podemos romantizar o assunto sério, não estamos mais em época de Gentlemen Prefer Blondes (1953) ou The Shrinking Man (1957); amanhã alguém vai repetir dos judeus todas as mentiras infames já dirigidas a eles, e caso consiga levantar-se em movimento aparentemente inédito, não adiantará os semitas tentarem esconder-se em um cinzeiro, pois serão encontrados. Está aí o exemplo de porque não podemos nos esquecer do passado. Pretender apagá-lo é um erro; censurar ideias, uma tolice. Se e quando piadas passarem do ponto, somente uma sociedade esclarecida - o único suporte real para uma democracia de verdade - saberá diferenciar entre comédia e apologia, e tomar a decisão correta de como proceder. Títeres de ditadores fazendo as vezes de censores, prefiro-os nas valas do Oitavo Círculo. 

   Outra tradição milenar é a do vinho laranja: acredita-se ter aparecido há 6000 anos, na atual Geórgia. Sua produção atravessou os séculos com altos e baixos, e teve em Josko Gravner seu ressurgimento no mais alto estilo. Enterrando seus Kvevri, vasos de barro semelhantes a ânforas com dois metros de altura, para garantir a fermentação com algum controle de temperatura, Gravner trouxe para o ocidente a técnica dos georgianos: prensar as uvas, despejar o suco, cascas, caules e sementes no Kvevri, selá-lo e enterrá-lo por seis meses ou mais, quando o vinho era passado para barris de carvalho. Após o envelhecimento, Gravner os engarrafava sem filtração. Experimentei dois vinhos dele, um comentado aqui, e outro, creio, aqui, por Don Flavitxo.

Evento da Mercearia 3M - parte II


Dos vinhos da Vale de Lobos, produzidos pela Quinta da Ribeirinha, comentarei alguns: O Vale de Lobos Reserva Branco é um corte de cepas portuguesa e outras estrangeiras: Sauvignon Blanc, Verdelho, Chardonnay e Gewurztraminer, nariz bem cítrico e boa complexidade, boca com muito frescor tocado a acidez média e final algo ligeiro, mas agradável. O Vale de Lobos Syrah Reserva teve dificuldade em esconder a cepa, mais pela cor do vinho, daquele escuro profundo. Aportou especiaria bem clara, boa fruta e boca marcada, como esperado de um Syrah, e deixou boa impressão. A linha Contracena apresentou-nos um vinho laranja produzido a partir da cepa branca Fernão Pires, conhecida na Bairrada como... Maria Gomes... Mas afinal, Fernão ou Maria? Tá, em alguns momentos, Fernão; em outros, Maria. Já ouvi essa conversa n'algum lugar... Bem, a primeira cafungada pareceu algo a querosene. Note: 'algo a'. É como a Riesling na Alsácia: se notar, lembra óleo Singer. Não qualquer óleo: Singer! Mas o Cristian, da Calcu, degustando conosco, definiu bem melhor: medicinal. Boca com boa acidez, potencializando o sabor a despeito dos 11,5% de álcool (dá para ver no rótulo!), mostrou bom final e retrogosto. Não gostei muito - estou mais acostumado aos exemplares italianos...


A mesa da Viu Manent estava bem servida, mas o escriba já havia bebido lá seus goles. Fui direto no Secreto Carménère. Digo e repito: experimento de tudo, até minhas cepas mais detestadas. O Antiyal é um ótimo Carménère, mas não vale USD 100,00. Por USD 30,00, eu compraria. Mas o assunto é o Secreto... não dá... o pimentão também está lá, com toda a graça para os fãs e completo desespero dos críticos... o conhecimento da acidez cai como a maldição do leitura para os mais letrados; Secreto a tem pouca, e apesar do tanino bem presente ele simplesmente fica um tanto sem graça.  Gostaria de ter experimentado os demais, mas já estava um tanto cheio...


Como proposta de observar vinhos mais em conta, encostei na bancada da mendocina Zapa, para experimentar seus vinhos 'Estate', na faixa de R$ 55,00. Zapa Estate Malbec e Zapa Estate Bonarda não diferiram muito: boa fruta no nariz, mas ligeiros e simples na boca. Leitor, tenha piedade deste Enochato por não guardar as notas de tantos vinhos. Mesmo anotando-as, também não estaria mais tão bem àquela hora, ainda mais para classificar bebidas com pouco diferencial. Mas lembrei-me de algum português de R$ 50,00 ofertado pelo Paulão durante o ano passado, compra em supermercado. Modesto? Sim. Simples? Sim. Mas com pelo menos uma pontinha de acidez e mais elegante, fazendo a alegria de quem já desentortou a boca. 

Haveria mais para comentar, mas o bom entendedor seguramente já entendeu a premissa desta postagem: uma passagem rápida por algo que pudesse ser mais interessante, dentro da perspectiva deste provador inveterado. Missão cumprida, vamos para a próxima.

4 comments:

  1. Carlão, uma pergunta, porque pessoas não tem memória crítica? Uma boa reflexão político social... Na minha opinião é devido, muito simplisticamente (sic/?), as enxurradas (?) as quantidades de eventos e pessoas. Quanto à degustação pareceu-me mais uma maratona sobressaindo a linha do vinho laranja, Contracena. Ação!

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    1. Luidgi, obrigado pela leitura.
      Bom ponto, 'memória crítica', ou 'atitude crítica', conforme prefiro. Acreditava ser a matemática um bom antídoto quanto isso, mas passada a juventude notei o número quase infinito de bestas com título de doutor (conhecedores de matemática) e sem atitude crítica. Desse número 'quase infinito' reputo 'quase infinito'/2 de idiotas mesmo e 'quase infinito'/2 de hipócritas que apoiam um regime em troca de dinheiro (salários). O número grande de idiotas comprovam como estou errado.

      Abordagem melhor talvez venha de Machado e suas observações sobre a eterna contradição da natureza humana, mas ele apenas as comenta, sabiamente não propondo solução alguma. A questão parece estar, no fim das contas, em aberto...

      Quanto à degustação, foi um pouco isso mesmo: maratona, para avaliar o 'estado da arte' dos vizinhos. Surpresa pelo branquinho da Calcu e interessante pelo vinho laranja português. Acho que o ponto é como a Mercearia 3M vem tratando os clientes, mais por prover-lhes o que gostam, sem apresentar-lhes novas oportunidades em tintos mais comuns, com melhor acidez e complexidade.

      obrigado!

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  2. Boa descrição Carlos.
    Não tinha o Calcu Futa? É um excelente vinho. Fiquei com uma dúvida. O Antiyal não é Carmenere, é? Não seria um blend, com a presença dela? Só se nesta safra tenha sido diferente. É um vinho que aprecio também, embora ache caro.
    Sds,
    Tarcísio

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    1. Tarcísio, obrigado pela leitura. Não, estavam lá apenas os exemplares de Calcu mostrados na foto.
      O Antiyal - até onde lembro - é um corte sim, com prevalência de Carménère. Talvez por isso tenha inadvertidamente feito a 'aproximação' de que seja um Carménère.
      E sim, também o considero caro, como estão todos os chilenos icônicos. Para pagar cerca de USD 130,00 por um deles - dizendo de outra maneira, se já estou jogando fora USD 100,00, na hipótese de custarem apenas isso - ponho mais, digamos, USD 50,00 e compro algo muito mais significativo.

      Obrigado.

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